Luiz Vaz de Camões
Os
Lusíadas
CANTO
I
1
- Assunto do Poema
As armas e os barões
assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca
de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em
perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força
humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto
sublimaram;
2
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que
foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras
viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E
aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte
libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me
ajudar o engenho e arte.
3
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações
grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama
das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre
Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram:
Cesse tudo o que a
Musa antígua canta,
Que outro valor mais alto se
alevanta.
Invocação às Ninfas do Tejo
4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim
um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi
de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e
sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de
vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às
de Hipoerene.
5
Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de
agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que
o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos
feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se
espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço
cabe em verso.
6 Dedicatória ao Rei Dom Sebastião
E
vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana
antígua liberdade,
E não menos certíssima
esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós,
ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da
nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do
mundo a Deus dar parte grande;
7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore
de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea
ou Cristianíssima chamada;
(Vede-o no vosso escudo, que
presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na
qual vos deu por armas, e deixou
As que Ele para si na Cruz
tomou)
8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo
em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio
do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós,
que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita
cavaleiro,
Do Turco oriental, e do Gentio,
Que inda bebe o
licor do santo rio;
9
Inclinai por um pouco a majestade,
Que nesse tenro gesto vos
contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando
subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde
no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios
feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
10 Amor da Pátria
Vereis amor da pátria,
não movido
De prêmio vil, mas alto e quase
eterno:
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por
um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome
engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis
qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de til
gente.
11 Os Grandes Feitos dos Portugueses
Ouvi,
que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas,
fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas,
de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são
tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas;
Que excedem
Rodamonte, e o vão Rugeiro,
E Orlando, inda que fora
verdadeiro,
12 Os Heróis Portugueses
Por estes vos
darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei o ao Reino tal serviço,
Um Egas, e um D. Fuas, que de Homero
A cítara para
eles só cobiço.
Pois pelos doze Pares dar-vos
quero
Os doze de Inglaterra, e o seu Magriço;
Dou-vos
também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneias toma a
fama.
13
Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
Ou de César,
quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja
lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E
aquele que a seu Reino a segurança
Deixou com a grande e
próspera vitória;
Outro Joane, invicto cavaleiro,
O
quarto e quinto Afonsos, e o terceiro.
14
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos
Reinos lá da Aurora
Fizeram, só por armas tão
subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco
fortíssimo, e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo
chora;
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em
quem poder não teve a morte.
15
Incitação a Dom Sebastião
E
enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime
Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós
do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido
canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça
espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África
as terras, e do Oriente os marços,
16
Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu
exício afigurado;
Só com vos ver o bárbaro
Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tethys
todo o cerúleo senhorio
Tem para vós por dote
aparelhado;
Que afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja
de comprar-vos para genro.
17
Em vós se vêm da olímpica morada
Dos dois
avós as almas cá famosas,
Uma na paz angélica
dourada,
Outra pelas batalhas sanguinosas;
Em vós
esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E
lá vos tem lugar, no fim da idade,
No templo da suprema
Eternidade.
18
Mas enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o
desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Para que
estes meus versos vossos sejam;
E vereis ir cortando o salso
argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são
vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser
invocado.
19
A Armada do Gama em Alto Mar
Já no largo
Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos
brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas
inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde
as proas vão cortando
As marítimas águas
consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas
20
Concílio dos Deuses no Olimpo
Quando os
Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana
gente,
Se ajuntam em concílio glorioso
Sobre as cousas
futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu formoso,
Vêm
pela Via-Láctea juntamente,
Convocados da parte do
Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
21
Deixam dos sete Céus o regimento,
Que do poder mais alto
lhe foi dado,
Alto poder, que só co'o pensamento
Governa
o Céu, a Terra, e o Mar irado.
Ali se acharam juntos num
momento
Os que habitam o Arcturo congelado,
E os que o Austro
tem, e as partes onde
A Aurora nasce, e o claro Sol se esconde.
22 Júpiter
Estava o Padre ali sublime e
dino,
Que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de
estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano.
Do
rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo
humano;
Com uma coroa e ceptro rutilante,
23
De outra pedra mais clara que diamante.
Em
luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo
estavam
Os outros Deuses todos assentados,
Como a razão
e a ordem concertavam:
Precedem os antíguos mais
honrados;
Mais abaixo os menores se assentavam;
Quando Júpiter
alto, assim dizendo,
C'um tom de voz começa, grave e
horrendo:
24 Fala de Júpiter
"Eternos moradores
do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,
Se
do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o
pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos
fados grandes certo intento,
Que por ela se esqueçam os
humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
25 Mouros e Castelhanos
"Já lhe foi
(bem o vistes) concedido
Cum poder tão singelo e tão
pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra, que
rega o Tejo ameno:
Pois contra o Castelhano tão
temido,
Sempre alcançou favor do Céu sereno.
Assim
que sempre, enfim, com fama e glória,
Teve os troféus
pendentes da vitória.
26 Viriato e Sertório
''Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
Que coa gente de
Rómulo alcançaram,
Quando com Viriato, na
inimiga
Guerra romana tanto se afamaram;
Também deixo a
memória, que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um
por seu capitão, que peregrino
Fingiu na cerva espírito
divino.
27 Fala de Júpiter
"Agora
vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho leve,
Por
vias nunca usadas, não temendo
De Áf rico e Noto a
força, a mais se atreve:
Que havendo tanto já que
as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e porfia
A ver os berços
onde nasce o dia.
28
"Prometido
lhe está do Fado eterno,
Cuja alta Lei não pode ser
quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar, que vê
do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro
inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem
feito que lhe seja
Mostrada a nova terra, que deseja.
29
"E
porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão
ásperos perigos,
Tantos climas e céus
experimentados,
Tanto furor de ventos inimigos,
Que sejam,
determino, agasalhados
Nesta costa africana, como amigos.
E
tendo guarnecida a lassa frota,
Tornarão a seguir sua longa
rota."
30
Oposição de Baco
Estas
palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses por ordem
respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões
diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não
consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que
esquecerão seus feitos no Oriente,
Se lá passar a
Lusitana gente.
31 Despeito e Inveja de Baco
Ouvido
tinha aos Fados que viria
Uma gente fortíssima de
Espanha
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da índia tudo
quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A
fama antiga, ou sua, ou fosse estranha.
Altamente lhe dói
perder a glória,
De que Nisa celebra inda a memória.
32
Vê que já
teve o Indo sojugado,
E nunca lhe tirou Fortuna, ou caso,
Por
vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água
de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão
célebre nome em negro vaso
D'água do esquecimento,
se lá chegam
Os fortes Portugueses, que navegam.
33 Vênus, Favorável aos Portugueses
Sustentava
contra ele Vênus bela,
Afeiçoada à gente
Lusitana,
Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão
amada sua Romana;
Nos fortes corações, na grande
estrela,
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua,
na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê
que é a Latina.
34
Estas
causas moviam Citereia,
E mais, porque das Parcas claro
entende
Que há de ser celebrada a clara Deia,
Onde a
gente belígera se estende.
Assim que, um pela infâmia,
que arreceia,
E o outro pelas honras, que pretende,
Debatem, e
na porfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.
35
Qual
Austro fero, ou Bóreas na espessura
De silvestre arvoredo
abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com
ímpeto e braveza desmedida;
Brama toda a montanha, o som
murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava
o tumulto levantado,
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
36 Marte
Mas
Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em porfia,
Ou
porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente forte o
merecia,
De entre os Deuses em pé se levantava:
Merencório
no gesto parecia;
O forte escudo ao colo pendurado
Deitando
para trás, medonho e irado,
37
A
viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui seguro,
Por
dar seu parecer, se pôs diante
De Júpiter, armado,
forte e duro:
E dando uma pancada penetrante,
Com o conto do
bastão no sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo,
de torvado,
Um pouco a luz perdeu, como enfiado.
38 Fala de Marte
E
disse assim: "Ó Padre, a cujo império
Tudo
aquilo obedece, que criaste,
Se esta gente, que busca outro
hemisfério,
Cuja valia, e obras tanto amaste,
Não
queres que padeçam vitupério,
Como há já
tanto tempo que ordenaste,
Não onças mais, pois és
juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.
39 Fala de Marte
"Que,
se aqui a razão se não mostrasse
Vencida do temor
demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de
Luso vem, seu tão privado;
Mas esta tenção
sua agora passe,
Porque enfim vem de estâmago danado;
Que
nunca tirará alheia inveja
O bem, que outrem merece, e o
Céu deseja.
40
"E
tu, Padre de grande fortaleza,
Da determinação, que
tens tomada,
Não tornes por detrás, pois é
fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
Mercúrio,
pois excede em ligeireza
Ao vento leve, e à seta bem
talhada,
Lhe vá mostrar a terra, onde se informe
Da
índia, e onde a gente se reforme."
41
Decide Júpiter a favor dos Portugueses
Como isto disse,
o Padre poderoso,
A cabeça inclinando, consentiu
No que
disse Mavorte valeroso,
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo
caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses se
partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Para os determinados
aposentos.
42 Entre Madagascar e Moçambique
Enquanto
isto se passa na formosa
Casa etérea do Olimpo
onipotente,
Cortava o mar a gente belicosa,
Já lá
da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a
famosa
Ilha de São Lourenço; e o Sol
ardente
Queimava então os Deuses, que Tifeu
Com o temor
grande em peixes converteu.
43
Tão brandamente os ventos os levavam,
Como quem o céu
tinha por amigo:
Sereno o ar, e os tempos se mostravam
Sem
nuvens, sem receio de perigo.
O promontório Prasso já
passavam,
Na costa de Etiópia, nome antigo,
Quando o mar
descobrindo lhe mostrava
Novas ilhas, que em torno cerca e
lava.
44
Vasco da Gama, o forte capitão,
Que a tamanhas
empresas se oferece,
De soberbo e de altivo coração,
A quem Fortuna sempre favorece,
Para se aqui deter não
vê razão,
Que inabitada a terra lhe parece:
Por
diante passar determinava;
Mas não lhe sucedeu como
cuidava.
45 Primeiro Contato com os Mouros
Eis aparecem
logo em companhia
Uns pequenos batéis, que vêm
daquela
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o
longo mar com larga vela.
A gente se alvoroça, e de
alegria
Não sabe mais que olhar a causa dela.
Que gente
será esta, em si diziam,
Que costumes, que Lei, que Rei
teriam?
46 Descrição
As embarcações
eram, na maneira,
Mui veloces, estreitas e compridas:
As velas,
com que, vêm, eram de esteira
Dumas folhas de palma, bem
tecidas;
A gente da cor era verdadeira,
Que Faeton, nas terras
acendidas,
Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:
O
Pado o sabe, o Lampetusa o sente.
47 Costumes
De panos de algodão vinham
vestidos,
De várias cores, brancos e listrados:
Uns
trazem derredor de si cingidos,
Outros em modo airoso
sobraçados:
Da cinta para cima vêm despidos;
Por
armas têm adargas o terçados;
Com toucas na cabeça;
e navegando,
Anafis sonoros vão tocando.
48 Ancoram os Portugueses
Co'os panos e co'os
braços acenavam
As gentes Lusitanas, que esperassem;
Mas
já as proas ligeiras se inclinavam
Para que junto às
ilhas amainassem.
A ,ente e marinheiros trabalhavam,
Como se
aqui os trabalhos se acabassem;
Tomam velas; amaina-se a verga
alta;
Da âncora, o mar ferido, em cima salta.
49 Vêm a Bordo os Mouros
Não eram
ancorados, quando a gente
Estranha pelas cordas já subia.
No gesto ledos vêm, e humanamente
O Capitão
sublime os recebia:
As mesas manda pôr em continente;
Do
licor que Lieo prantado havia
Enchem vasos de vidro, e do que
deitam,
Os de Faeton queimados nada enjeitam.
50 Informações Dadas pelos Portugueses
Comendo
alegremente perguntavam,
Pela Arábica língua, donde
vinham,
Quem eram, de que terra, que buscavam,
Ou que partes do
mar corrido tinham?
Os fortes Lusitanos lhe tornavam
As
discretas respostas, que convinham:
"Os Portugueses somos do
Ocidente,
Imos buscando as terras do Oriente.
51 Dizem os Portugueses Quem São Que Buscam
"Do
mar temos corrido e navegado
Toda a parte do Antártico e
Calisto,
Toda a costa Africana rodeado,
Diversos céus e
terras temos visto;
Dum Rei potente somos, tão amado,
Tão
querido de todos, e benquisto,
Que não no largo mar, com
leda fronte,
Mas no lago entraremos de Aqueronte.
52
"E por mandado seu, buscando andamos
A terra Oriental que
o Indo rega;
Por ele, o mar remoto navegamos,
Que só dos
feios focas se navega.
Mas já razão parece que
saibamos,
Se entre vós a verdade não se nega,
Quem
sois, que terra é esta que habitais,
Ou se tendes da Índia
alguns sinais?"
53
Informações Dadas pelos Mouros
"Somos, um
dos das ilhas lhe tornou,
Estrangeiros na terra, Lei e nação;
Que
os próprios são aqueles, que criou
A natura sem Lei
e sem razão.
Nós temos a Lei certa, que ensinou
O
claro descendente de Abraão
Que agora tem do mundo o
senhorio,
A mãe Hebréia teve, e o pai
Gentio.
Informações. A Ilha de Moçambique.
54
"Esta ilha pequena, que habitamos,
em toda esta terra
certa escala
De todos os que as ondas navegamos
De Quíloa,
de Mombaça e de Sofala;
E, por ser necessária,
procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E
por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha
Moçambique.
55 Prometem ao Gama um Piloto para a Índia
"E
já que de tão longe navegais,
Buscando o Indo Idaspe
e terra ardente,
Piloto aqui tereis, por quem sejais
Guiados
pelas ondas sabiamente.
Também será bem feito que
tenhais
Da terra algum refresco, e que o Regente
Que esta terra
governa, que vos veja,
E do mais necessário vos proveja."
56 Retiram-se os Mouros
Isto dizendo, o Mouro se
tornou
A seus batéis com toda a companhia;
Do Capitão
e gente se apartou
Com mostras de devida cortesia.
Nisto Febo
nas águas encerrou,
Co'o carro de cristal, o claro
dia,
Dando cargo à irmã, que alumiasse
O largo
mundo, enquanto repousasse.
57 Alegria a Bordo
A noite se passou na lassa
frota
Com estranha alegria, e não cuidada,
Por acharem
da terra tão remota
Nova de tanto tempo desejada.
Qualquer
então consigo cuida e nota
Na gente e na maneira
desusada,
E como os que na errada Seita creram,
Tanto por todo
o mundo se estenderam,
58
Da Lua os claros raios rutilavam
Pelas argênteas ondas
Neptuninas,
As estrelas os Céus acompanhavam,
Qual campo
revestido de boninas;
Os furiosos ventos repousavam
Pelas covas
escuras peregrinas;
Porém da armada a gente vigiava,
Como
por longo tempo costumava.
Prepara-se a Armada para Receber a
Visita do Regedor
59
Mas assim como a Aurora marchetada
Os formosos cabelos
espalhou
No Céu sereno, abrindo a roxa entrada
Ao claro
Hiperiónio, que acordou,
Começa a embandeirar-se
toda a armada,
E de toldos alegres se adornou,
Por receber com
festas e alegria
O Regedor das ilhas, que partia.
60 Visita o Regedor a Nau da Gama
Partia
alegremente navegando,
A ver as naus ligeiras Lusitanas,
Com
refresco da terra, em si cuidando
Que são aquelas gentes
inumanas,
Que, os aposentos cáspios habitando,
A
conquistar as terras Asianas
Vieram; e por ordem do Destino,
O
Império tomaram a Constantino.
61
Recebe o Capitão alegremente
O Mouro, e toda a sua
companhia;
Dá-lhe de ricas peças um presente,
Que
só para este efeito já trazia;
Dá-lhe
conserva doce, e dá-lhe o ardente
Não usado licor,
que dá alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe;
E
muito mais contente come e bebe.
62
Está a gente marítima de Luso
Subida
pela enxárcia, de admirada,
Notando o estrangeiro modo e
uso,
E a linguagem tão bárbara e enleada.
Também
o Mouro astuto está confuso,
Olhando a cor, o trajo, e a
forte armada;
E perguntando tudo, lhe dizia
"Se por
ventura vinham de Turquia?"
63 Perguntas do Regedor ao Gama
E mais lhe diz
também, que ver deseja
Os livros de sua Lei, preceito eu
fé,
Para ver se conforme à sua seja,
Ou se são
dos de Cristo, como Crê.
E porque tudo note e tudo veja,
Ao
Capitão pedia que lhe dê
Mostra das fortes armas de
que usavam,
Quando co'os inimigos pelejavam.
64 Respostas do Gama
Responde o valeroso
Capitão
Por um, que a língua escura bem
sabia:
"Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
De
mim, da Lei, das armas que trazia.
Nem sou da terra, nem da
geração
Das gentes enojosas de Turquia:
Mas sou
da forte Europa belicosa,
Busco as terras da índia tão
famosa.
65 São Cristãos
A lei tenho
daquele, a cujo império
Obedece o visíbil e
ínvisíbil
Aquele que criou todo o Hemisfério,
Tudo o que sente, o todo o insensíbil;
Que padeceu
desonra e vitupério,
Sofrendo morte injusta e insofríbil,
E que do Céu à Terra, enfim desceu,
Por subir
os mortais da Terra ao Céu.
66 As Armas de Guerra dos Portugueses
Deste
Deus-Homem, alto e infinito,
Os livros, que tu pedes não
trazia,
Que bem posso escusar trazer escrito
Em papel o que na
alma andar devia.
Se as armas queres ver, como tens dito,
Cumprido
esse desejo te seria;
Como amigo as verás; porque eu me
obrigo,
Que nunca as queiras ver como inimigo."
67
Isto dizendo, manda os diligentes
Ministros amostrar as
armaduras:
Vêm arneses, e peitos reluzentes,
Malhas
finas, e lâminas seguras,
Escudos de pinturas
diferentes,
Pelouros, espingardas de aço puras,
Arcos, e
sagitíferas aljavas,
Partazanas agudas, chuças
bravas:
68 As bombas vêm de fogo, e
juntamente
As panelas sulfúreas, tão danosas;
Porém
aos de Vulcano não consente
Que dêem fogo às
bombardas temerosas;
Porque o generoso ânimo e
valente,
Entre gentes tão poucas e medrosas,
Não
mostra quanto pode, e com razão,
Que é fraqueza
entre ovelhas ser leão.
69 Duplicidade do Regedor
Porém disto, que
o Mouro aqui notou,
E de tudo o que viu com olho atento
Um ódio
certo na alma lhe ficou,
Uma vontade má de pensamento.
Nas
mostras e no gesto o não mostrou;
Mas com risonho e ledo
fingimento
Tratá-los brandamente determina,
Até
que mostrar possa o que imagina.
70 Falsas Promessas
Pilotos lhe pedia o
Capitão,
Por quem pudesse à Índia ser
levado;
Diz-lhe que o largo prêmio levarão
Do
trabalho que nisso for tomado.
Promete-lhos o Mouro, com
tenção
De peito venenoso, e tão danado,
Que
a morte, se pudesse, neste dia,
Em lugar de pilotos lhe daria.
71
Tamanho o ódio foi, e a má vontade,
Que aos
estrangeiros súbito tomou,
Sabendo ser sequazes da
verdade,
Que o Filho de David nos ensinou.
ó segredos
daquela Eternidade,
A quem juízo algum nunca alcançou!
Que
nunca falte um pérfido inimigo
Aqueles de quem foste tanto
amigo!
72 Retira-se o Regedor
Partiu-se Disto enfim coa
companhia,
Das naus o falso Mouro despedido,
Com enganosa e
grande cortesia,
Com gesto ledo a todos, e fingido.
Cortaram os
batéis a curta via
Das águas de Neptuno, e
recebido
Na terra do obsequente ajuntamento
Se foi o Mouro ao
cógnito aposento.
73 Ódio de Baco aos Portugueses
Do
claro assento etóreo o grão Tebano,
Que da paternal
coxa foi nascido,
Olhando o ajuntamento Lusitano
Ao Mouro ser
molesto e avorrecido,
No pensamento cuida um falso engano,
Com
que seja de todo destruído.
E enquanto isto só na
alma imaginava,
Consigo estas palavras praticava:
74 Solilóquio de Baco
"Está
do fado já determinado,
Que tamanhas vitórias, tão
famosas,
Hajam os Portugueses alcançado
Das Indianas
gentes belicosas.
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com
tantas qualidades generosas,
Hei de sofrer que o fado
favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?
75
"Já
quiseram os Deuses que tivesse
O filho de Filipo nesta parte
Tanto
poder, que tudo submetesse
Debaixo de seu jugo o fero Marte.
Mas
há-se de sofrer que o fado desse
A tão poucos
tamanho esforço e arte,
Que eu co'o grão Macedônio,
e o Romano,
Demos lugar ao nome Lusitano?
76
"Não será assim, porque antes que chegado
Seja
este Capitão, astutamente
Lhe será tanto engano
fabricados
Que nunca veja as partes do Oriente.
Eu descerei à
Terra, e o indignado
Peito revolverei da Maura gente;
Porque
sempre por via irá direita
Quem do oportuno tempo se
aproveita."
77 Disfarce de Baco para Perder os Portugueses
Isto
dizendo, irado e quase insano,
Sobre a terra africana
descendeu,
Onde vestindo a forma e gesto humano,
Para o Prasso
sabido se moveu.
E por melhor tecer o astuto engano,
No gesto
natural se converteu
Dum Mouro, em Moçambique
conhecido
Velho, sábio, e co'o Xeque mui valido.
78 Intrigas de um Mouro Contra os Portugueses
E
entrando assim a falar-lhe a tempo e horas
A sua falsidade
acomodadas,
Lhe diz como eram gentes roubadoras,
Estas que ora
de novo são chegadas;
Que das nações na costa
moradoras
Correndo a fama veio que roubadas
Foram por estes
homens que passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.
79
E sabe mais, lhe diz, como entendido
Tenho destes cristãos
sanguinolentos,
Que quase todo o mar têm destruído
Com
roubos, com incêndios violentos;
E trazem já de longe
engano urdido
Contra nós; e que todos seus intentos
São
para nos matarem e roubarem,
E mulheres e filhos cativarem.
80 Aconselha ao Regedor uma Cilada
"E
também sei que tem determinado
De vir por água a
terra muito cedo
O Capitão dos seus acompanhado,
Que da
tensão danada nasce o medo.
Tu deves de ir também
co'os teus armado
Esperá-lo em cilada, oculto e
quedo;
Porque, saindo a gente descuidada,
Cairão
facilmente na cilada.
81 Outro Estratagema Contra os Portugueses
"E
se inda não ficarem deste jeito
Destruídos, ou
mortos totalmente
Eu tenho imaginado no conceito
Outra manha e
ardil, que te contente:
Manda-lhe dar piloto, que de jeito
Seja
astuto no engano, e tão prudente,
Que os leve aonde sejam
destruídos,
Desbaratados, mortos, ou perdidos."
82
Tanto
que estas palavras acabou,
O Mouro, nos tais casos sábio e
velho,
Os braços pelo colo lhe lançou,
Agradecendo
muito o tal conselho;
E logo nesse instante concertou
Para a
guerra o belígero aparelho,
Para que ao Português se
lhe tornasse
Em roxo sangue a água, que buscasse.
83
E busca mais, para o cuidado engano,
Mouro, que por piloto
à nau lhe mande,
Sagaz, astuto, e sábio em todo o
dano,
De quem fiar-se possa um feito grande.
Diz-lhe que
acompanhando o Lusitano,
Por tais costas e mares com ele
ande,
Que, se daqui escapar, que lá diante
Vá
cair onde nunca se alevante.
84
Vai o Gama a Terra Buscar Água
Já
o raio Apolíneo visitava
Os montes Nabatêos
acendido,
Quando o Gama, colos seus determinava
De vir por água
a terra apercebido.
A gente nos batéis se concertava,
Como
se fosse o engano já sabido:
Mas pode suspeitar-se
facilmente,
Que o coração pressago nunca mente.
85
E
mais também mandado tinha a terra,
De antes, pelo piloto
necessário,
E foi-lhe respondido em som de guerra,
Caso
do que cuidava mui contrário;
Por isto, e porque sabe
quanto erra
Quem se crê de seu pérfido
adversário,
Apercebido vai como podia,
Em três
batéis somente que trazia.
86
Emboscada
dos Mouros
Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe
defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e
de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que
a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em
cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça,
Põem
uns poucos diante por negaça,
87 Escaramuça
Andam
pela ribeira alva, arenosa,
Os belicosos Mouros acenando
Com a
adarga e coa hástia perigosa,
Os fortes Portugueses
incitando.
Não sofre muito a gente generosa
Andar-lhe os
cães os dentes amostrando.
Qualquer em terra salta tão
ligeiro,
Que nenhum dizer pode que é primeiro.
88
Qual
no corro sanguino o ledo amante,
Vendo a formosa dama desejada,
O
touro busca, e pondo-se diante,
Salta, corre, sibila, acena, e
brada,
Mas o animal atroce, nesse instante,
Com a fronte
cornígera inclinada,
Bramando duro corre, e os olhos
cerra,
Derriba, fere e mata, e põe por terra:
89 Atiram os Portugueses Contra os Mouros
Eis
nos batéis o fogo se levanta
Na furiosa e dura
artilharia,
A plúmbea péla mata, o brado
espanta,
Ferido o ar retumba e assovia:
O coração
dos Mouros se quebranta,
O temor grande o sangue lhe resfria.
Já
foge o escondido de medroso,
E morre o descoberto aventuroso.
90 Duro Castigo Infligido aos Mouros
Não
se contenta a gente Portuguesa,
Mas seguindo a vitória
estrui e mata;
A povoação, sem muro e sem
defesa,
Esbombardeia, acende e desbarata.
Da cavalgada ao Mouro
já lhe pesa,
Que bem cuidou comprá-la mais
barata;
Já blasfema da guerra, e maldizia,
O velho
inerte, e a mãe que o filho cria.
91
Fogem os Mouros
Fugindo,
a seta o Mouro vai tirando
Sem força, de covarde e de
apressado,
A pedra, o pau, e o canto arremessando;
Dá-lhe
armas o furor desatinado.
Já a ilha e todo o mais
desemparando,
A terra firme foge amedrontado;
Passa e corta do
mar o estreito braço,
Que a ilha em torno cerca, em pouco
espaço
92
Uns
vão nas almadias carregadas,
Um corta o mar a nado
diligente,
Quem se afoga nas ondas encurvadas,
Quem bebe o mar,
e o deita juntamente.
Arrombam as miúdas bombardadas
Os
pangaios subtis da bruta gente:
Desta arte o Português enfim
castiga
A vil malícia, pérfida, inimiga.
93
Tornam
vitoriosos para a armada,
Co'o despojo da guerra e rica presa,
E
vão a seu prazer fazer aguada,
Sem achar resistência,
nem defesa.
Ficava a Maura gente magoada,
No ódio antigo
mais que nunca acesa;
E vendo sem vingança tanto
dano,
Somente estriba no segundo engano.
94 Paz Simulada e Falso Piloto
Pazes
cometer manda arrependido
O Regedor daquela iníqua
terra,
Sem ser dos Lusitanos entendido,
Que em figura de paz
lhe manda guerra;
Porque o piloto falso prometido,
Que toda a
má tenção no peito encerra,
Para os guiar à
morte lhe mandava,
Como em sinal das pazes que tratava.
95
Partida de Moçambique para Quíloa
O
Capitão, que já lhe então convinha
Tornar a
seu caminho acostumado,
Que tempo concertado e ventos tinha
Para
ir buscar o Indo desejado,
Recebendo o piloto, que lhe vinha,
Foi
dele alegremente agasalhado;
E respondendo ao mensageiro a
tento,
As velas manda dar ao largo vento.
96
O Gama e o Falso Piloto
Desta
arte despedida a forte armada,
As ondas de Anfitrite dividia,
Das
filhas de Nereu acompanhada,
Fiel, alegre e doce companhia.
O
Capitão, que não caía em nada
Do enganoso
ardil, que o Mouro urdia,
Dele mui largamente se informava
Da
Índia toda, e costas que passava.
97
Falsos Informes do Piloto
Mas
o Mouro, instruído nos enganos
Que o malévolo Baco
lhe ensinara,
De morte ou cativeiro novos danos,
Antes que à
Índia chegue, lhe prepara:
Dando razões dos portos
Indianos,
Também tudo o que pede lhe declara,
Que,
havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se
temia.
98 E diz-lhe mais, com o falso pensamento
Com que Sinon os Frígios enganou:
Que perto está
uma ilha, cujo assento
Povo antigo cristão sempre habitou.
O Capitão, que a tudo estava a tento,
Tanto com estas
novas se alegrou,
Que com dádivas grandes lhe rogava,
Que
o leve à terra onde esta gente estava.
99
Traição do Piloto
O
mesmo o falso Mouro determina,
Que o seguro Cristão lhe
manda e pede;
Que a ilha é possuída da malina
Gente
que segue o torpe Mahamede.
Aqui o engano e morte lhe
imagina,
Porque em poder e forças muito excede
A
Moçambique esta ilha, que se chama
Quíloa, mui
conhecida pela fama.
100 Vênus
desvia a Frota do Falso Rumo
Para
lá se inclinava a leda frota;
Mas a Deusa em Citere
celebrada,
Vendo como deixava a certa rota
Por ir buscar a
morte não cuidada,
Não consente que em terra tão
remota
Se perca a gente dela tanto amada.
E com ventos
contrários a desvia
Donde o piloto falso a leva e
guia.
101 Nova Insídia do
Piloto
Mas
o malvado Mouro, não podendo
Tal determinação
levar avante,
Outra maldade iníqua cometendo,
Ainda em
seu propósito constante,
Lhe diz que, pois as águas
discorrendo
Os levaram por força por diante,
Que outra
ilha tem perto, cuja gente
Eram Cristãos com Mouros
juntamente.
102 Chegada à
Mombaça
Também
nestas palavras lhe mentia,
Como por regimento enfim levava,
Que
aqui gente de Cristo não havia,
Mas a que a Mahamede
celebrava.
O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
Virando
as velas, a ilha demandava;
Mas, não querendo a Deusa
guardadora,
Não entra pela barra, e surge fora.
103
Estava a ilha à
terra tão chegada,
Que um estreito pequeno a dividia;
Uma
cidade nela situada,
Que na fronte do mar aparecia,
De nobres
edifícios fabricada,
Como por fora ao longe
descobria,
Regida por um Rei de antiga idade:
Mombaça é
o nome da ilha e da cidade.
104
E
sendo a ela o Capitão chegado,
Estranhamente ledo, porque
espera
De poder ver o povo batizado,
Como o falso piloto lhe
dissera,
Eis vêm batéis da terra com recado
Do
Rei, que já sabia a gente que era:
Que Baco muito de antes
o avisara,
Na forma doutro Mouro, que tomara.
105
Incerteza da Vida Humana
O
recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem
coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o
engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos
perigos!
Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a
gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão
pouca segurança!
106
No mar tanta
tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na
terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade
avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá
segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu
sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
CANTO II
1
Já neste tempo o lúcido
Planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à
desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes
encobrindo,
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus
Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
As
naus, que pouco havia que ancoraram.
2
Pérfido Convite do Rei de Mombaça ao Gama
Dentre
eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assim
dizia:
"Capitão valeroso, que cortado
Tens de
Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta ilha,
alvoroçado
Da vinda tua, tem tanta alegria,
Que não
deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do necessário
reformar-te.
3 Pérfido Convite ao rei de Mombaça ao Gama
"E
porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa
nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com
toda armada:
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a
gente débil e cansada,
Diz que na terra podes
reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-la.
4
"E
se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero
Levante,
Canela, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutífera
e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o
rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão
sobejo
Com que faças o fim a teu desejo."
5 Resposta do Gama
Ao mensageiro o Capitão
responde
As palavras do Rei agradecendo:
E diz que, porque o
Sol no mar se esconde,
Não entra para dentro,
obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde
Vá
sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio
seu mandado,
Que a mais por tal senhor está
obrigado.
6
Pergunta-lhe depois, se estão
na terra
Cristãos, como o piloto lhe dizia;
O mensageiro
astuto, que não erra,
Lhe diz, que a mais da gente em
Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
Toda a suspeita
e cauta fantasia;
Por onde o Capitão seguramente
Se fia
da infiel e falsa gente.
7 Manda o Gama a Terra Dois Degredados Colher Informações
E
de alguns que trazia condenados
Por culpas e por feitos
vergonhosos,
Por que pudessem ser aventurados
Em casos desta
sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Por que
notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e por que vejam
Os
Cristãos, que só tanto ver desejam.
8 Presentes para o Rei de Mombaça
E por
estes ao Rei presentes manda,
Por que a boa vontade, que
mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda;
A qual bem ao
contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida
e nefanda
Das naus se despedia e o mar cortava:
Foram com
gestos ledos e fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.
9 Os Dois Degredados em Terra
E depois que ao Rei
apresentaram,
Co'o recado, os presentes que traziam,
A cidade
correram, e notaram
Muito menos daquilo que queriam;
Que os
Mouros cautelosos se guardaras
De lhes mostrarem tudo o que
pediam:
Que onde reina a malícia, está o receio,
Que a faz imaginar no peito alheio.
10 Baco Finge-se Cristão
Mas aquele que
sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De
duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante
destruído,
Estava numa casa da cidade,
Com rosto humano
e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e
fabricava
Um altar sumptuoso, que adorava.
11
Ali
tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a
pintura:
A cândida pombinha debuxada
Sobre a única
Fênix, Virgem pura;
A companhia santa está
pintada
Dos doze, tão torvados na figura,
Como os que,
só das línguas que caíram,
De fogo, várias
línguas referiram.
12 Visitam os Degredados a Cidade
Aqui os dous
companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem
em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo
governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia
odorífera, queimava
O Tioneu, e assim por derradeiro
O
falso Deus adora o verdadeiro.
13
Aqui foram
de noite agasalhados,
Com todo o bom e honesto tratamento,
Os
dous Cristãos, não vendo que enganados
Os tinha o
falso e santo fingimento.
Mas assim como os raios espalhados
Do
Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido
horizonte
Da moça de Titão a roxa fronte,
14 Insiste o Rei com o Gama
para que Enfrente a
Barra
Tornam da terra os Mouros co'o recado
Do Rei, para que
entrassem, e consigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A
quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo o Português
certificado
De não haver receio de perigo,
E que gente
de Cristo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.
15 O que Dizem os Degredados
Dizem-lhe os que
mandou, que em terra
Sacras aras e sacerdote sinto; viram
Que
ali se agasalharam o dormiram,
Enquanto a luz cobriu o escuro
manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão
contentamento e gosto tanto,
Que não podia certo haver
suspeita
Numa mostra tão clara e tão perfeita.
16 Sobem os Mouros a Bordo da Nau do Gama
Com
isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam;
Que
levemente um ânimo se fia
De mostras, que tão certas
pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
Deixando a
bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos, porque crêm
Que
a presa desejada certa têm.
17 Novas Ciladas dos Mouros
Na terra. cautamente
aparelhavam
Armas e munições que, como vissem
Que
no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E,
nesta treição determinavam
Que os de Luso de todo
destruíssem,
E que incautos pagassem deste jeito
O mal
que em Moçambique tinham feito.
18 Vênus e as Nereidas Socorrem os Portugueses
As
âncoras tenaces vão levando
Com a náutica
grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento
dando
Inclinam para a barra abalizada.
Mas a linda Ericina,
que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a
cilada grande, e tão secreta,
Voa do Céu ao mar
como uma seta.
19
Convoca as alvas filhas de
Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no
salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia.
E
propondo-lhe a causa a que desceu,
Com todas juntamente se
partia,
Para estorvar que a armada não chegasse
20 As Nereidas
Já na água erguendo
vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas
branca escuma;
Cloto eo'o peito corta e atravessa
Com mais
furor o mar do que costuma.
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por
cima da água crespa, em força suma.
Abrem caminho as
ondas encurvadas
De temor das Nereidas apressadas.
21 Vênus
Nos ombros de um Tritão,
com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente
quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão
formosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as
velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As
naus ligeiras, que iam por diante.
22
Põe-se a Deusa com outras em direito
Da proa capitaina,
e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito,
Que
em vão assopra o vento, a vela inchando.
Põem no
madeiro duro o brando peito,
Para detrás a forte nau
forçando;
Outras em derredor levando-a estavam,
E da
barra inimiga a desviavam.
23
Quais para a
cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande
acomodado,
As forças exercitam, de inimigas
Do inimigo
inverno congelado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali
mostram vigor nunca esperado:
Tais andavam as Ninfas estorvando
A
gente Portuguesa o fim nefando.
24 Descobrem a Cilada os Portugueses
Torna para
detrás a nau forçada,
Apesar dos que leva, que
gritando
Mareiam velas; ferve a gente irada,
O leme a um bordo
e a outro atravessando;
O mestre astuto em vão da popa
brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo
penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.
25
A
celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha;
O
grande estrondo a Maura gente espanta,
Como se vissem hórrida
batalha;
Não sabem a razão de fúria
tanta,
Não sabem nesta pressa quem lhe valha;
Cuidam que
seus enganos são sabidos,
E que hão de ser por isso
aqui punidos.
26 Fogem os Mouros
Ei-los subitamente se
lançavam
A seus batéis velozes que traziam;
Outros
em cima o mar alevantavam,
Saltando nágua, a nado se
acolhiam;
De um bordo e doutro súbito saltavam,
Que o
medo os compelia do que viam;
Que antes querem ao mar
aventurar-se
Que nas mãos inimigas entregar-se.
27
Assim
como em selvática alagoa
As rãs, no tempo antigo
Lícia gente,
Se sentem por ventura vir pessoa,
Estando
fora da água incautamente,
Daqui e dali saltando, o charco
soa,
Por fugir do perigo que se sente,
E acolhendo-se ao couto
que conhecem,
Sós as cabeças na água lhe
aparecem:
28
Assim fogem os Mouros; e o
piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu
engano estava noto,
Também foge, saltando na água
amara.
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a
vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer
das outras junto dela amaina.
29
Vendo o
Gama, atentado, a estranheza
Dos Mouros, não cuidada, e
juntamente
O piloto fugir-lhe com presteza,
Entende o que
ordenava a bruta gente;
E vendo, sem contraste e sem braveza
Dos
ventos, ou das águas sem corrente,
Que a nau passar avante
não podia,
Havendo-o por milagre, assim dizia:
30 Exclamação e Súplica do Gama
"Ó
caso grande, estranho e não cuidado,
Ó milagre
claríssimo e evidente,
Ó descoberto engano
inopinado,
Ó pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem
poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo sabiamente,
Se lá de cima a Guarda soberana
Não acudir à
fraca força humana?
31
"Bem nos
mostra a divina Providência
Destes portos a pouca
segurança;
Bem claro temos visto na aparência,
Que
era enganada a nossa confiança.
Mas pois saber humano nem
prudência
Enganos tão fingidos não alcança,
Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
De quem sem ti não
pode ser guardado!
32
"E se te move tanto a piedade
Desta mísera gente
peregrina,
Que só por tua altíssima bondade,
Da
gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum porto seguro de
verdade
Conduzir-nos já agora determina,
Ou nos
amostra a terra que buscamos,
Pois só por teu serviço
navegamos."
33 Vênus Impetra a Proteção de Júpiter
para os Portugueses
Ouviu-lhe essas palavras
piedosas
A formosa Dione, e comovida,
Dentre as Ninfas se vai,
que saudosas
Ficaram desta súbita partida.
Já
penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera
recebida
Avante passa, e lá no sexto Céu,
Para
onde estava o Padre, se moveu.
34
E como ia
afrontada do caminho,
Tão formosa no gesto se mostrava,
Que
as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,
E tudo quanto a via
namorava.
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos
vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E
tornava do Fogo a esfera fria.
35
E por mais
namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e eriça,
Se
lhe apresenta assim como ao Troiano,
Na selva Idea, já se
apresentara.
Se a vira o caçador, que o vulto
humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os
famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.
36 Retrato de Vênus
Os crespos fios d'ouro
se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as
lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava, e não
se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino
as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que
como hera se enrolavam.
37
C'um delgado
sendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural
reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre,
O véu,
dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda
o dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se
sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano,
amor em Marte.
38
E mostrando no angélico
semblante
Co'o riso uma tristeza misturada,
Como dama que foi
do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se
aqueixa e se ri num mesmo instante,
E se torna entre alegre
magoada,
Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,
Mais mimosa
que triste ao Padre fala:
39 Fala de Vênus a Júpiter
"Sempre
eu cuidei, ó Padre poderoso,
Que, para as cousas que eu do
peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto
que a algum contrário lhe pesasse;
Mas, pois que contra mim
te vejo iroso,
Sem que to merecesse, nem te errasse,
Faça-se
como Baco determina;
Assentarei enfim que fui mofina.
40
"Este
povo que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em
vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero, pois
que o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo!
Por ele a ti
rogando choro e bramo,
E contra minha dita enfim pelejo.
Ora
pois, porque o amo é mal tratado,
Quero-lhe querer mal,
será guardado.
41
"Mas moura
enfim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fui..."
E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas
ardentes,
Como co'o orvalho fica a fresca rosa.
Calada um
pouco, como se entre os dentes
Se lhe impedira a fala
piedosa,
Torna a segui-la; e indo por diante,
Lhe atalha o
poderoso e grão Tonante.
42 Júpiter Afaga e Consola Vênus
E
destas brandas mostras comovido,
Que moveram de um tigre o peito
duro,
Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,
Torna
sereno e claro o ar escuro,
As lágrimas lhe alimpa, e
acendido
Na face a beija, e abraça o colo puro;
De modo
que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se
gerara.
43
E co'o seu apertando o rosto
amado,
Que os soluços e lágrimas aumenta,
Como
menino da ama castigado,
Que quem no afaga o choro lhe
acrescente,
Por lhe pôr em sossego o peito irado,
Muitos
casos futuros lhe apresenta.
Dos fados as entranhas
revolvendo,
Desta maneira enfim lhe está dizendo:
44 Vaticina Júpiter os Gloriosos Feitos dos
Portugueses no Oriente
"Formosa filha minha, não
temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém
comigo possa mais,
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu
vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e
Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de
fazer nas partes do Oriente.
45 "Novos Mundos ao Mundo Irão Mostrando"
"Que
se o facundo Ulisses escapou
De ser na Ogígia ilha eterno
escravo,
E se Antenor os seios penetrou
Ilíricos e a
fonte de Timavo;
E se o piedoso Eneias navegou
De Cila e de
Caríbdis o mar bravo,
Os vossos, mores cousas
atentando,
Novos mundos ao mundo irão mostrando.
46 Vaticínios de Júpiter
"Fortalezas,
cidades e altos muros,
Por eles vereis, filha, edificados;
Os
Turcos belacíssimos e duros,
Deles sempre vereis
desbaratados.
Os Reis da índia, livres e seguros,
Vereis
ao Rei potente sojugados;
E por eles, de tudo enfim
senhores,
Serão dadas na terra leis melhores.
47
"Vereis
este, que agora pressuroso
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer dele Neptuno, de medroso
Sem vento suas águas
encrespando.
Ó caso nunca visto e milagroso,
Que trema
e ferva o mar, em calma estando!
Ó gente forte e de altos
pensamentos,
Que também dela hão medo os Elementos!
48 Moçambique
"Vereis a terra, que a
água lhe tolhia,
Que inda há-de ser um porto mui
decente,
Em que vão descansar da longa via
As naus que
navegarem do Ocidente.
Toda esta costa enfim, que agora urdia
O
mortífero engano, obediente
Lhe pagará tributos,
conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.
49 Ormuz
"E vereis o mar Roxo, tão
famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;
Vereis de Ormuz o
Reino poderoso
Duas vezes tomado e sojugado.
Ali vereis o
Mouro furioso
De suas mesmas setas traspassado:
Que quem vai
contra os vossos, claro veja
Que, se resiste, contra si peleja.
50 Dio
"Vereis a inexpugnábil Dio
forte,
Que dous cercos terá, dos vossos sendo.
Ali se
mostrará seu preço e sorte,
Feitos de armas
grandíssimos fazendo.
Invejoso vereis o grão
Mavorte
Do peito Lusitano fero e horrendo:
Do Mouro ali verão
que a voz extrema
Do falso Mahamede ao Céu blasfema.
51 Goa
"Goa vereis aos Mouros ser tomada,
A
qual virá depois a ser senhora
De todo o Oriente, e
sublimada
Co'os triunfos da gente vencedora.
Ali soberba,
altiva, e exalçada,
Ao Gentio, que os ídolos
adora,
Duro freio porá, e a toda a terra
Que cuidar de
fazer aos vossos guerra.
52 Cananor. Calecu. Cochim
"Vereis a
fortaleza sustentar-se
De Cananor, com pouca força e
gente;
E vereis Calecu desbaratar-se,
Cidade populosa e tão
potente:
E vereis em Cochim assinalar-se
Tanto um peito soberbo
e insolente,
Que cítara jamais cantou vitória,
Que
assim mereça eterno nome e glória.
53
"Nunca
com Marte instructo e furioso,
Se viu ferver Leucate, quando
Augusto
Nas civis Actias guerras animoso,
O Capitão
venceu Romano injusto,
Que dos povos da Aurora, e do famoso
Nilo,
e do Bactra Cítico e robusto
A vitória trazia, e
presa rica,
Preso na Egípcia linda e nego pudica.
54 Áurea Quersoneso (Malaca)
Como vereis o
mar fervendo aceso
Colos incêndios dos vossos
pelejando,
Levando o Idololatra, e o Mouro preso,
De nações
diferentes triunfando.
E sujeita a rica Áurea
Quersoneso,
Até ao longínquo China navegando,
E
as ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á todo o Oceano
obediente.
55
"De modo, filha minha, que
de jeito
Amostrarão esforço mais que humano,
Que
nunca se verá tão forte peito,
Do Gangético
mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas ao Estreito,
Que mostrou
o agravado Lusitano,
Posto que em todo o mundo, de
afrontados,
Ressuscitassem todos os passados."
Júpiter Envia Mercúrio à Cidade de
Melinde,
para Predispor a Gente a Favor dos Portugueses
56
Como isto disse, manda o consagrado
Filho
de Maia à Terra, por que tenha
Um pacífico porto o
sossegado,
Para onde sem receio a frota venha;
F, para que em
Mombaça, aventurado,
O forte Capitão se não
detenha,
Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostra
A terra, onde
quieto repousasse.
57 Mercúrio
Já pelo ar o Cileneu
voava;
Com as asas nos pés à Terra desce;
Sua
vara fatal na mão levava,
Com que os olhos cansados
adormece:
Com esta, as tristes almas revocava
Do Inferno, e o
vento lhe obedece.
Na cabeça o galero costumado.
E desta
arte a Melinde foi chegado.
58
Consigo a Fama
leva, por que diga
Do Lusitano o preço grande e raro,
Que
o nome ilustre a um certo amor obriga
E faz, a quem o tem, amado e
caro.
Desta arte vai fazendo a gente amiga,
Co rumor
famosíssimo, e perclaro.
Já Melinde em desejos arde
todo
De ver da gente forte o gesto e modo.
Parte
Mercúrio para Mombaça, a Avisar os Portugueses
da
Cilda que Lhes Preparam os Mouros
59
Dali para Mombaça logo parte,
Aonde
as naus estavam temerosas,
Para que à gente mande que se
aparte
Da barra amiga e terras suspeitosas:
Porque mui pouco
val esforço e arte,
Contra infernais vontades
enganosas;
Pouco val coração, astúcia e
siso,
Se lá dos Céus não vem celeste aviso.
60 Mercúrio Aparece em Sonho ao Gama
No
feio caminho a noite tinha anelado,
E, as estrelas no Céu,
coa luz alhea,
Tinham o largo Mundo alumiado;
E só co'o
sono a gente se recreia.
O Capitão ilustre, já
cansado
De vigiar a noite que arreceia,
Breve repouso então
aos olhos dava,
A outra gente a quartos vigiava;
61 Fala de Mercúrio ao Gama
Quando
Mercúrio em sonhos lhe aparece,
Dizendo: "Fuge, fuge,
Lusitano,
Da cilada que o Rei malvado tece,
Por te trazer ao
fim, e extremo dano;
Fuge, que o vento, e o Céu te
favorece;
Sereno o tempo tens e o Oceano,
E outro Rei mais
amigo, noutra parte,
Onde podes seguro agasalhar-te.
62
"Não
tens aqui senão aparelhado
O hospício que o cru
Diomedes dava,
Fazendo ser manjar acostumado
De cavalos a gente
que hospedava;
As aras de Busíris infamado,
Onde os
hóspedes tristes imolava,
Terás certas aqui, se
muito esperas.
Fuge das gentes pérfidas e feras.
63 Aconselha Mercúrio ao Gama que Demande o Porto de
Melinde
"Vai-te ao longo da costa discorrendo,
E
outra terra acharás de mais verdade,
Lá quase junto
donde o Sol ardendo
Iguala o dia e noite em quantidade;
Ali tua
frota alegre recebendo
Um Rei, com muitas obras de
amizade,,
Gasalhado seguro te daria,
E, para a índia,
certa e sábia guia."
64
Isto Mercúrio disse, e o sono leva
Ao
Capitão, que com mui grande espanto
Acorda, e vê
ferida a escura treva
De uma súbita luz e raio santo.
E
vendo claro quanto lhe releva
Não se deter na terra iníqua
tanto,
Com novo espírito ao mestre seu mandava
Que as
velas desse ao vento que assopravam.
65 Partida da Armada para Melinde
"Dai
velas, disse, dai ao largo vento,
Que o Céu nos favorece e
Deus o manda;
Que um mensageiro vi do claro assento
Que só
em favor de nossos passos anda."
Alevanta-se nisto o
movimento
Dos marinheiros, de uma e de outra banda;
Levam
gritando as âncoras acima,
Mostrando a ruda força,
que se estima.
66 Tentam os Mouros Cortar as Amarras às Naus
Neste
tempo, que as âncoras levavam,
Na sombra escura os Mouros
escondidos
Mansamente as amarras lhe cortavam,
Por serem, dando
à costa, destruídos;
Mas com vista de linces
vigiavam
Os Portugueses, sempre apercebidos.
Eles, como
acordados os sentiram,
Voando, e não remando, lhe
fugiram.
67
Mas já as agudas proas
apartando
Iam as vias húmidas de argento;
Assopra-lhe
galerno o vento, e brando,
Com suave e seguro movimento.
Nos
perigos passados vão falando,
Que mal se perderão do
pensamento
Os casos grandes, donde em tanto aperto
A vida em
salvo escapa por acerto.
68 Dois Navios Mouros
Tinha uma volta dado o Sol
ardente
E noutro começava, quando viram
Ao longe deus
navios, brandamente
Co'os ventos navegando, que respiram:
Porque
haviam de ser da Maura gente,
Para eles arribando, as velas
viram:
Um, de temor do mal que arreceava,
Por se salvar a gente
à costa dava.
69 Aprisiona o Gama um dos Navios
Não é
o outro que fica tão manhoso;
Mas nas mãos vai cair
do Lusitano,
Sem o rigor de Marte furioso,
E sem a fúria
horrenda de Vulcano;
Que como fosse débil e medroso
Da
pouca gente o fraco peito humano,
Não teve resistência;
e se a tivera,
Mais dano resistindo recebera.
70 Informações Acerca de Melinde
E
como o Gama muito desejasse
Piloto para a Índia que
buscava,
Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;
Mas não
lhe sucedeu como cuidava,
Que nenhum deles há que lhe
ensinasse
A que parte dos céus a Índia estava;
Porém
dizem-lhe todos, que tem perto
Melinde, onde achará piloto
certo.
71
Louvam do Rei os Mouros a
bondade,
Condição liberal, sincero
peito,
Magnificência grande e humanidade,
Com partes de
grandíssimo respeito.
O Capitão o assela por
verdade,
Porque já lhe dissera, deste jeito,
Cileneu em
sonhos; e partia
Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.
72 Chegada do Gama a Melinde
Era no tempo alegre,
quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e
outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia:
A
memória do dia renovava
O pressuroso Sol, que o Céu
rodeia,
Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,
O selo
pôs a quanto tinha feito;
73 Hospitaleira Recepção em Melinde
Quando
chegava a frota àquela parte,
Onde o Reino Melinde já
se via,
De toldos adornada, e leda de arte
Que bem mostra
estimar o santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor
purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores o
pandeiros,
E assim entravam ledos e guerreiros.
74
Enche-se
toda a praia Melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente
mais verdadeira, e mais humana,
Que toda a doutra terra atrás
deixada.
Surge diante a frota Lusitana,
Pega no fundo a âncora
pesada;
Mandam fora um dos Mouros que tomaram,
Por quem sua
vinda ao Rei manifestaram.
75 Convite do Rei de Melinde, para que Desembarcassem
O
Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses
engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza,
Quanto a gente
fortíssima merece:
E com verdadeiro ânimo e
pureza,
Que os peitos generosos enobrece,
Lhe manda rogar muito
que saíssem,
Para que de seus reinos se servissem.
76 Presentes do Rei de Melinde
São
oferecimentos verdadeiros,
E palavras sinceras, não
dobradas,
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,
Que tanto
mar e terras tem passadas.
Manda-lhe mais lanígeros
carneiros,
E galinhas domésticas cevadas,
Com as frutas,
que então na terra havia;
E a vontade à dádiva
excedia.
77 Presentes do Gama
Recebe o Capitão
alegremente
O mensageiro ledo e seu recado;
E logo manda ao Rei
outro presente,
Que de longe trazia aparelhado:
Escarlata
purpúrea, cor ardente,
O ramoso coral, fino e prezado,
Que
debaixo das águas mole cresce,
E como é fora delas
se endurece.
78 Envia o Gama ao Rei um Embaixador
Manda mais
um, na prática elegante,
Que co'o Rei nobre as pazes
concertasse,
E que de não sair naquele instante
De suas
naus em terra o desculpasse.
Partido assim o embaixador
prestante,
Como na terra ao Rei se apresentasse,
Com estilo que
Palas lhe ensinava,
Estas palavras tais falando orava:
79 Fala do Embaixador Português ao Rei de
Melinde
"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro
Foi da
suma Justiça concedido
Refrear o soberbo povo duro,
Não
menos dele amado, que temido:
Como porto mui forte e mui
seguro,
De todo o Oriente conhecido,
Te vimos a buscar, para
que achemos
Em ti o remédio certo que queremos.
80
"Não
somos roubadores, que passando
Pelas fracas cidades descuidadas,
A
ferro e a fogo as gentes vão matando,
Por roubar-lhe as
fazendas cobiçadas;
Mas da soberba Europa navegando,
Imos
buscando as terras apartadas
Da Índia grande e rica, por
mandado
De um Rei que temos, alto e sublimado.
81 Fala do Embaixador ao Rei de Melinde
"Que
geração tão dura há hi de gente,
Que
bárbaro costume e usança feia,
Que não vedem
os portos tão somente,
Mas inda o hospício da
deserta areia?
Que má tenção, que peito em
nós se sente,
Que de tão pouca gente se
arreceia?
Que com laços armados, tão fingidos,
Nos
ordenassem ver-nos destruídos?
82
"Mas
tu, e quem mui certo confiamos
Achar-se mais verdade, ó Rei
benigno,
E aquela certa ajuda em ti esperamos,
Que teve o
perdido Ítaco em Alcino,
A teu porto seguro
navegamos,
Conduzidos do intérprete divino;
Que, pois a
ti nos manda, está mui claro,
Que és de peito
sincero, humano e raro.
83
"E não
cuides, ó Rei, que não saísse
O nosso Capitão
esclarecido
A ver-te, ou a servir-te, porque visse
Ou
suspeitasse em ti peito fingido:
Mas saberás que o fez,
porque cumprisse
O regimento, em tudo obedecido,
De seu Rei,
que lhe manda que não saia,
Deixando a frota, em nenhum
porto ou praia.
84
"E porque é,
de vassalos o exercício,
Que os membros tem regidos da
cabeça,
Não quererás, pois tens de Rei o
ofício,
Que ninguém a seu Rei desobedeça;
Mas as mercês e o grande benefício,
Que ora acha
em ti, promete que conheça
Em tudo aquilo que ele e os seus
puderem,
Enquanto os rios para o mar correrem."
85
Assim
dizia; e todos juntamente,
Uns com outros em prática
falando,
Louvavam muito o estâmago da gente,
Que tantos
céus e mares vai passando.
E o Rei ilustre, o peito
obediente
Dos Portugueses na alma imaginando,
Tinha por valor
grande e mui subido
O do Rei que é tão longe
obedecido.
86 Resposta do Rei de Melinde ao Embaixador do Gama
E
com risonha vista e ledo aspeito,
Responde ao embaixador, que
tanto estima:
"Toda a suspeita má tirai do
peito,
Nenhum frio temor em vós se imprima;
Que vosso
preço e obras são de jeito
Para vos ter o mundo em
muita estima;
E quem vos fez molesto tratamento,
Não
pode ter subido pensamento.
87 Resposta do Rei de Melinde, que Promete Piloto e
Mantimentos
"De não sair em terra toda a
gente,
Por observar a usada preminência,
Ainda que me
pese estranhamente,
Em muito tenho a muita obediência;
Mas,
se lho o regimento não consente,
Nem eu consentirei que a
excelência
De peitos tão leais em si desfaça,
Só
porque a meu desejo satisfaça.
88
"Porém,
como a luz crástina chegada
Ao mundo for, em minhas
almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo,
há tantos dias;
E se vier do mar desbaratada,
Do furioso
vento e longas vias,
Aqui terá, de limpos
pensamentos,
Piloto, munições e mantimentos."
89 Volta do Embaixador à Frota
Isto disse;
e nas águas se escondia
O filho de Latona; e o
mensageiro
Coa embaixada alegre se partia
Para a frota, no seu
batel ligeiro.
Enchem-se os peitos todos de alegria.
Por terem
o remédio verdadeiro
Para acharem a terra que buscavam;
E
assim ledos a noite festejavam.
90 Festejos a Bordo e em Terra
Não faltam
ali os raios de artifício,
Os trêmulos cometas
imitando;
Fazem os bombardeiros seu ofício,
O céu,
a terra e as ondas atroando.
Mostra-se dos Ciclopas o
exercício
Nas bombas que de fogo estão
queimando;
Outros com vozes, com que o céu
feriam,
Instrumentos altíssonos tangiam.
91
Respondem-lhe
da terra juntamente,
Co'o raio volteando, com zunido;
Anda em
giros no ar a roda ardente,
Estoura o pó sulfúreo
escondido.
A grita se alevanta ao céu, da gente;
O mar
se via em fogos acendido,
E não menos a terra; e assim
festeja
Um ao outro, a maneira de peleja.
92 Visita do Rei de Melinde ao Gama
Mas já
o Céu inquieto revolvendo,
As gentes incitava a seu
trabalho,
E já a mãe de Menon a luz trazendo,
Ao
sono longo punha certo atalho;
Iam-se as sombras lentas
desfazendo,
Sobre as flores da terra em frio orvalho,
Quando o
Rei Melindano se embarcava
A ver a frota, que no mar
estava.
93
Viam-se em derredor ferver as
praias
Da gente, que a ver só concorre leda;
Luzem da
fina púrpura as cabaias,
Lustram os panos da tecida
seda;
Em lugar das guerreiras azagaias
E do arco, que os cornos
arremeda
Da Lua, trazem ramos de palmeira,
Dos que vencem,
coroa verdadeira.
94
Um batel grande e largo,
que toldado
Vinha de sedas de diversas cores,
Traz o Rei de
Melinde, acompanhado
De nobres e seu Reino e de senhores:
Vem
de ricos vestidos adornado,
Segundo seus costumes e primores;
Na
cabeça uma fota guarnecida
De ouro, e de seda e de algodão
tecida.
95
Cabaia de Damasco rico e dino,
Da
Tíria cor, entre eles estimada,
Um colar ao pescoço,
de ouro fino,
Onde a matéria da obra é
superada,
C'um resplendor reluze adamantino;
Na cinta, a rica
bem lavrada;
Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,
Cobrem
ouro e aljôfar ao veludo.
96
Com um
redondo emparo alto de seda,
Numa alta e dourada hástia
enxerido,
Um ministro à solar quentura veda.
Que não
ofenda e queime o Rei subido.
Música traz na proa, estranha
e leda,
De áspero som, horríssono ao ouvido,
De
trombetas arcadas em redondo,
Que, sem concerto, fazem rudo
estrondo.
97
Não menos guarnecido o
Lusitano
Nos seus batéis, da frota se partia
A receber
no mar o Melindano,
Com lustrosa e lograda companhia.
Vestido o
Gama vem ao modo Hispano,
Mas Francesa era a roupa que vestia,
De
cetim da Adriática Veneza
Carmesi, cor que a gente tanto
preza:
98
De botões douro as mangas
vêm tomadas,
Onde o Sol reluzindo a vista cega;
As calças
soldadescas recamadas
Do metal, que Fortuna a tantos nega,
E
com pontas do mesmo delicadas
Os golpes do gibão ajunta e
achega;
Ao Itálico modo a áurea espada;
Pluma na
gorra, um pouco declinada.
99
Nos de sua
companhia se mostrava
Da tinta, que dá o múrice
excelente,
A vária cor, que os olhos alegrava,
E a
maneira do trajo diferente.
Tal o formoso esmalte se notava
Dos
vestidos, olhados juntamente,
Qual aparece o arco rutilante
Da
bela Ninfa, filha de Taumante.
100
Sonorosas
trombetas incitavam
Os ânimos alegres, ressoando;
Dos
Mouros os batéis, o mar coalhavam,
Os toldos pelas águas
arrojando;
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as
nuvens de fumo o Sol tomando;
Amiúdam-se os brados
acendidos,
Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.
101 Encontro do Rei de Melinde com o Gama
Já
no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos seus braços
o levava;
Ele coa cortesia, que a razão
(Por ser Rei)
requeria, lhe falava.
C'umas mostras de espanto e admiração,
O
Mouro o gesto e o modo lhe notava,
Como quem em mui grande estima
tinha
Gente que de tão longe à índia vinha.
102 Prática do Rei de Melinde com o Gama
E
com grandes palavras lhe oferece
Tudo o que de seus Reinos lhe
cumprisse,
E que, se mantimento lhe falece,
Como se próprio
fosse, lho pedisse.
Diz-lhe mais, que por fama bem conhece
A
gente Lusitana, sem que a visse;
Que já ouviu dizer, que
noutra terra
Com gente de sua Lei tivesse guerra.
103
E
como por toda África se soa,
Lhe diz, os grandes feitos que
fizeram,
Quando nela ganharam a coroa
Do Reino, onde as
Hespéridas viveram;
E com muitas palavras apregoa
O
menos que os de Luso mereceram,
E o mais que pela fama o Rei
sabia.
Mas desta sorte o Gama respondia:
104 Fala do Gama ao Rei de Melinde
"Ó
tu, que só tiveste piedade,
Rei benigno, da gente
Lusitana,
Que com tanta miséria e adversidade
Dos mares
experimenta a fúria insana;
Aquela alta e divina
Eternidade,
Que o Céu revolve e rege a gente humana,
Pois
que de ti tais obras recebemos,
Te pague o que nós outros
não podemos.
105
"Tu só,
de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz, cio mar
profundo;
Em ti dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio
achamos bom, fido e jocundo.
Enquanto apascentar o largo Pólo
As
Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Onde quer que eu viver, com
fama e glória
Viverão teus louvores em memória."
106 Visita do Rei de Melinde à Frota
Isto
dizendo, os barcos vão remando
Para a frota, que o Mouro
ver deseja;
Vão as naus uma e uma rodeando,
Porque de
todas tudo note e veja.
Mas para o céu Vulcano fuzilando,
A
frota coas bombardas o festeja,
E as trombetas canoras lhe
tangiam;
Co'os anafis os Mouros respondiam.
107
Mas
depois de ser tudo já notado
Do generoso Mouro, que
pasmava
Ouvindo o instrumento inusitado,
Que tamanho terror em
si mostrava,
Mandava estar quieto e ancorado
Nágua
o batel ligeiro que os levava,
Por falar de vagar co'o forte
Gama,
Nas cousas de que tem notícia e faina.
Pede o Rei ao Gama que Lhe Narre a História de
Portugal
e da Viagem que Realizou
108
Em práticas o Mouro diferentes
Se
deleitava, perguntando agora
Pelas guerras famosas e
excelentes
Co'o povo havidas, que a Mafoma adora;
Agora lhe
pergunta pelas gentes
De toda a Hespéria última,
onde mora;
Agora pelos povos seus vizinhos,
Agora pelos úmidos
caminhos.
109
"Mas antes, valeroso
Capitão,
Nos conta, lhe dizia, diligente,
Da terra tua o
clima, e região
Do mundo onde morais distintamente;
E
assim de vossa antiga geração,
E o princípio
do Reino tão potente,
Co'os sucessos das guerras do
começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de
preço.
110
"E assim também
nos conta dos rodeios
Longos, em que te traz o mar irado,
Vendo
os costumes bárbaros alheios.
Que a nossa África
ruda tem criado.
Conta: que agora vêm co'os áureos
freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria
Aurora trazem,
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.
111 Continuação da Fala
do Rei de
Melinde ao Gama
"E não menos co'o tempo se parece
O
desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há, que por
fama não conhece
As obras Portuguesas singulares?
Não
tanto desviado resplandece
De nós o claro Sol, para
julgares
Que os Melindanos têm tão rudo peito,
Que
não estimem muito um grande feito.
112
"Cometeram
soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e
puro;
Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,
O Reino de
Plutão horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão
possantes,
Não menos é trabalho ilustre e
duro,
Quanto foi cometer Inferno o Céu,
Que outrem
cometa a fúria de Nereu.
113
"Queimou
o sagrado templo de Diana,
Do subtil Tesifónio
fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido
no mundo e nomeado:
Se também com tais obras nos engana
O
desejo de um nome avantajado,
Mais razão há que
queira eterna glória
Quem faz obras tão dignas de
memória."
CANTO III
1 Invocação a
Calíope
Agora tu, Calíope, me ensina
O
que contou ao Rei o ilustre Gama:
Inspira imortal canto e voz
divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assim o claro
inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda
Dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o
amor devido, como soe.
2
Põe tu,
Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que
veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e
mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me
Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum
receio,
Que se escureça o teu querido Orfeio.
3 Preâmbulo da Narração do Gama
Prontos
estavam todos escutando
O que o sublime Gama contaria,
Quando,
depois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assim
dizia:
"Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De
minha gente a grão genealogia:
Não me mandas contar
estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a
glória.
4
"Que outrem possa
louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se
deseja;
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor
tão suspeito mal me esteja;
E para dizer tudo, temo e
creio,
Que qualquer longo tempo curto seja:
Mas, pois o mandas,
tudo se te deve,
Irei contra o que devo, e serei breve.
5
"Além
disso, o que a tudo enfim me obriga,
É não poder
mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há-de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto
a ordens leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro
tratarei da larga terra,
Depois direi da sanguinosa guerra.
6 Descrição Geográfica da Europa
"Entre
a Zona que o Cancro senhoreia,
Meta setentrional do Sol luzente,
E
aquela que por f ria se arreceia
Tanto, como a do meio por
ardente,
Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
Pela parte do
Areturo, e do Ocidente,
Com suas salsas ondas o Oceano,
E pela
Austral o mar Mediterrano.
7
"Da parte
donde o dia vem nascendo,
Com Ásia se avizinha; mas o
rio
Que dos montes Rifeios vai correndo,
Na alagoa Meotis,
curvo o frio,
As divide: e o mar que, fero e horrendo,
Viu dos
Gregos o irado senhorio,
Onde agora de Tróia triunfante
Não
vê mais que a memória o navegante.
8
"Lá
onde mais debaixo está do Pólo,
Os montes
Hiperbóreos aparecem,
E aqueles onde sempre sopra Eolo,
E
co'o nome, dos sopros se enobrecem.
Aqui tão pouca força
tem de Apolo
Os raios que no mundo resplandecem,
Que a neve
está contido pelos montes,
Gelado o mar, geladas sempre as
fontes.
9
"Aqui dos Citas grande
quantidade
Vivem, que antigamente grande guerra
Tiveram, sobre
a humana antiguidade,
Co'os que tinham então a Egípcia
terra;
Mas quem tão fora estava da verdade,
(Já
que o juízo humano tanto erra)
Para que do mais certo se
informara,
Ao campo Damasceno o perguntara.
10 Lapônia
"Agora nestas partes se
nomeia
A Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia
Ilha, que se arreia
Das vitórias que Itália não
lhe nega.
Aqui, enquanto as águas não refreia
O
congelado inverno, se navega
Um braço do Sarmático
Oceano
Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano.
11
"Entre
este mar e o Tánais vive estranha
Gente: Rutenos, Moseos e
Livónios,
Sármatas outro tempo; e na
montanha
Hircínia os Marcomanos são
Polónios.
Sujeitos ao Império de Alemanha
São
Saxones, Boêmios e Panónios,
E outras várias
nações, que o Reno frio
Lava, e o Danúbio,
Amasis e Albis rio.
12 Trácia e Turquia
"Entre o remoto
Istro e o claro Estreito,
Aonde Hele deixou coo nome a
vida,
Estão os Traces de robusto peito,
Do fero Marte
pátria tão querida,
Onde, colo Hemo, o Ródope
sujeito
Ao Otomano está, que submetida
Bizâncio
tem a seu serviço indino:
Boa injúria do grande
Constantino!
13 Grécia
"Logo de Macedónia
estão as gentes,
A quem lava do Axio a água fria;
E
vós também, ó terras excelentes
Nos costumes,
engenhos e ousadia,
Que criastes os peitos eloquentes
E os
juízos de alta fantasia,
Com quem tu, clara Grécia,
o Céu penetras,
E não menos por armas, que por
letras.
14 Veneza
"Logo os Dálmatas vivem; e
no seio,
Onde Antenor já muros levantou,
A soberba
Veneza está no meio
Das águas, que tão baixa
começou.
Da terra um braço vem ao mar, que cheio
De
esforço, nações várias sujeitou,
Braço
forte, de gente sublimada,
Não menos nos engenhos, que na
espada.
15 Itália
"Em torno o cerca o Reino
Neptunino,
Co'os muros naturais por outra parte;
Pelo meio o
divide o Apenino,
Que tão ilustre fez o pátrio
Marte;
Mas depois que o Porteiro tem divino,
Perdendo o esforço
veio, e bélica arte;
Pobre está já de antiga
potestade:
Tanto Deus se contenta de humildade!
16 França
"Gália ali se verá
que nomeada
Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo,
Que do
Séquana e Ródano é regada,
E do Giruna frio e
Reno fundo.
Logo os montes da Ninfa sepultada
Pirene se
alevantam, que segundo
Antiguidades contam, quando arderam,
Rios
de ouro e de prata então correram.
17 Espanha
"Eis aqui se descobre a nobre
Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo
senhorio o glória estranha
Muitas voltas tem dado a fatal
roda;
Mas nunca poderá, com força ou manha,
A
fortuna inquieta pôr-lhe noda,
Que lhe não tire o
esforço e ousadia
Dos belicosos peitos que em si
cria.
18
"Com Tingitânia entesta,
e ali parece
Que quer fechar o mar Mediterrano,
Onde o sabido
Estreito se enobrece
Co'o extremo trabalhado Tebano.
Com nações
diferentes se engrandece,
Cercadas com as ondas do Oceano;
Todas
de tal nobreza e tal valor,
Que qualquer delas cuida que é
melhor.
19
"Tem o Tarragonês, que
se fez claro
Sujeitando Parténope inquieta;
O Navarro,
as Astúrias, que reparo
Já foram contra a gente
Mahometa;
Tem o Galego cauto, e o grande e raro
Castelhano, a
quem fez o seu Planeta
Restituidor de Espanha e senhor
dela,
Bétis, Lião, Granada, com Castela.
20 Portugal
"Eis aqui, quase cume da
cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se
acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este
quis o Céu justo que floresça
Nas armas contra o
torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora, e lá na
ardente
África estar quieto o não consente.
22 Luso ou Lisa
"Esta é a ditosa
pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que
eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se
esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De
Luso, ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou
companheiros,
E nela então os Íncolas primeiros.
22 Viriato
"Desta o pastor nasceu, que no
seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja
fama ninguém virá que dome,
Pois a grande de Roma
não se atreve.
Esta, o velho que os filhos próprios
come
Por decreto do Céu, ligeiro e leve,
Veio a fazer no
mundo tanta parte,
Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte:
23 Afonso VI, de Castela
"Um Rei, por nome
Afonso, foi na Espanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que
por armas sanguinas, força e manha,
A muitos fez perder a
vida o a terra;
Voando deste Rei a fama estranha
Do Herculano
Calpe à Cáspia serra,
Muitos, para na guerra
esclarecer-se,
Vinham a ele e à morte oferecer-se.
24
"E
com um amor intrínseco acendidos
Da Fé, mais que das
honras populares,
Eram de várias terras
conduzidos,
Deixando a pátria amada e próprios
lares.
Depois que em feitos altos e subidos
Se mostraram nas
armas singulares,
Quis o famoso Afonso que obras tais
Levassem
prêmio digno e dons iguais.
25 Henrique de Borgonha
"Destes Anrique,
dizem que segundo
Filho de um Rei de Ungria exprimentado,
Portugal
houve em sorte, que no mundo
Então não era ilustre
nem prezado;
E, para mais sinal d'amor profundo,
Quis o Rei
Castelhano, que casado
Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;
E
com ela das terras tornou posse.
26
"Este,
depois que contra os descendentes
Da escrava Agar vitórias
grandes teve,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que
a seu forte peito deve,
Em prêmio destes feitos
excelentes,
Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,
Um filho,
que ilustrasse o nome ufano
Do belicoso Reino Lusitano.
27
"Já
tinha vindo Anrique da conquista
Da cidade Hierosólima
sagrada,
E do Jordão a areia tinha vista,
Que viu de
Deus a carne em si lavada;
Que não tendo Gotfredo a quem
resista,
Depois de ter Judeia sojugada,
Muitos, que nestas
guerras o ajudaram,
Para seus senhorios se tornaram;
28 Afonso Henriques
"Quando chegado ao fim
de sua idade,
O forte e famoso Úngaro estremado,
Forçado
da fatal necessidade,
O espírito deu a quem lhe tinha
dado,
Ficava o filho em tenra mocidade,
Em quem o pai deixava
seu traslado,
Que do mundo os mais fortes igualava;
Que de tal
pai tal filho se esperava.
29
"Mas o
velho rumor, não sei se errado,
Que em tanta antiguidade
não há certeza,
Conta que a mãe, tomando todo
o estado,
Do segundo himeneu não se despreza.
O filho
órfão deixava deserdado,
Dizendo que nas terras a
grandeza
Do senhorio todo só sua era,
Porque, para
casar, seu pai lhes dera.
30 Lutas de Afonso Henriques
com a mãe, dona
Teresa
" Mas o Príncipe Afonso, que desta arte
Se chamava, do avô tomando o nome,
Vendo-se em suas
terras não ter parte,
Que a mãe, com seu marido, as
manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina
consigo como as tome.
Revolvidas as causas no conceito,
Ao
propósito firme segue o efeito.
31 Batalha de São Mamede
"De
Guimarães o campo se tingia
Co'o sangue próprio da
intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o
parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Com ele posta em
campo já se via;
E não vê a soberba o muito
que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o
sensual era maior.
32
"Ó Progne
crua! ó mágica Medeia!
Se em vossos próprios
filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai
que inda Teresa peca mais:
Incontinência má, cobiça
feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por
uma, mata o velho pai,
Esta, por ambas, contra o filho vai.
33 Prisão de Dona Teresa
"Mas já
o Príncipe claro o vencimento
Do padrasto e da iníqua
mãe levava;
Já lhe obedece a terra num momento,
Que
primeiro contra ele pelejava.
Porém, vencido de ira o
entendimento,
A mãe em ferros ásperos atava;
Mas
de Deus foi vingada em tempo breve:
Tanta veneração
aos pais se deve!
34 Afonso VII, de Leão, Invade Portugal
"Eis
se ajunta o soberbo Castelhano,
Para vingar a injúria de
Teresa,
Contra o tão raro em gente Lusitano,
A quem
nenhum trabalho agrava ou pesa.
Em batalha cruel o peito
humano,
Ajudado da angélica defesa,
Não só
contra tal fúria se sustenta,
Mas o inimigo aspérrimo
afugenta.
35 Cerco de Guimarães
"Não
passa muito tempo, quando o forte
Príncipe em Guimarães
está cercado
De infinito poder; que desta sorte
Foi
refazer-se o inimigo magoado;
Mas, com se oferecer à dura
morte
O fiel Egas amo, foi livrado;
Que de outra arte pudera
ser perdido,
Segundo estava mal apercebido.
36 Egas Moniz
''lulas o leal vassalo,
conhecendo
Que seu senhor não tinha resistência,
Se
vai ao Castelhano, prometendo
Que ele faria dar-lhe
obediência.
Levanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na
promessa e consciência
De Egas Moniz; mas não
consente o peito
Do moço ilustre a outrem ser
sujeito.
37
"Chegado tinha o prazo
prometido,
Em que o Rei Castelhano já aguardava
Que o
Príncipe, a seu mando sometido,
Lhe desse a obediência
que esperava.
Vendo Egas que ficava fementido,
O que dele
Castela não cuidava,
Determina de dar a doce vida
A
troco da palavra mal cumprida.
38
"E com
seus filhos e mulher se parte
A alevantar com eles a
fiança,
Descalços e despidos, de tal arte,
Que
mais move a piedade que a vingança.
"Se
pretendes, Rei alto, de vingar-te
De minha temerária
confiança,
Dizia, eis aqui venho oferecido
A te pagar,
coa vida, o prometido.
39
"Vês
aqui trago as vidas inocentes
Dos filhos sem pecado e da
consorte;
Se a peitos generosos e excelentes,
Dos fracos
satisfaz a fera morte.
Vês aqui as mãos e a língua
delinquentes:
Nelas sós exprimenta toda a sorte
De
tormentos, de mortes, pelo estilo
De Cínis e do touro de
Perilo"!
40
"Qual diante do
algoz o condenado,
Que já na vida a morte tem bebido,
Põe
no cepo a garganta, e já entregado
Espera pelo golpe tão
temido:
Tal diante do Príncipe indinado,
Egas estava a
tudo oferecido.
Mas o Rei, vendo a estranha lealdade,
Mais
pôde, enfim, que a ira a piedade.
41
"Ó
grão fidelidade Portuguesa,
De vassalo, que a tanto se
obrigava!
Que mais o Persa fez naquela empresa,
Onde rosto e
narizes se cortava?
Do que ao grande Dario tanto pesa,
Que mil
vezes dizendo suspirava,
Que mais o seu Zopiro são
prezara,
Que vinte Babilónias que tomara.
42 Afonso Prepara-se para Combater
os
Mouros em Portugal
Mas já o Príncipe Afonso
aparelhava
O Lusitano exército ditoso,
Contra o Mouro
que as terras habitava
Dalém do claro Tejo
deleitoso;
Já no campo de Ourique se assentava
O arraial
soberbo e belicoso,
Defronte do inimigo Sarraceno,
Posto que em
força e gente tão pequeno.
43
"Em
nenhuma outra cousa confiado,
Senão no sumo Deus, que o Céu
regia,
Que tão pouco era o povo batizado,
Que para um só
cem Mouros haveria.
Julga qualquer juízo sossegado
Por
mais temeridade que ousadia,
Cometer um tamanho ajuntamento,
Que
para um cavaleiro houvesse cento.
44 "Cinco Reis Mouros São Inimigos
"Cinco
Reis Mouros são os inimigos,
Dos quais o principal Ismar se
chama;
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde se
alcança a ilustre fama.
Seguem guerreiras damas seus
amigos,
Imitando a formosa e forte Dama,
De quem tanto os
Troianos se ajudaram,
E as que o Termodonte já gostaram.
45 Visão de Afonso Henriques
"A
matutina luz serena e fria,
As estrelas do Pólo já
apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a
Afonso, o animava.
Ele, adorando quem lhe aparecia,
Na Fé
todo inflamado assim gritava:
"Aos infiéis,
Senhor, aos infiéis,
E não a mim, que creio o que
podeis!"
46 Afonso Henriques é Clamado Rei de Portugal
"Com
tal milagre os ânimos da gente
Portuguesa inflamados,
levantavam
Por seu Rei natural este excelente
Príncipe,
que do peito tanto amavam;
E diante do exército potente
Dos
imigos, gritando o céu tocavam,
Dizendo em alta voz:
"Real, real,
Por Afonso alto Rei de Portugal."
47
"Qual
co'os gritos e vozes incitado,
Pela montanha o rábido
Moloso,
Contra o touro remete, que fiado
Na força está
do corno temeroso:
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo
mais ligeiro que forçoso,
Até que enfim,
rompendo-lhe a garganta,
Do bravo a força horrenda se
quebranta:
48 Batalha de Ourique
"Tal do Rei novo o
estâmago acendido
Por Deus e pelo povo juntamente,
O
Bárbaro comete apercebido,
Co'o animoso exército
rompente.
Levantam nisto os perros o alarido
Dos gritos, tocam
a arma, ferve a gente,
As lanças e arcos tomam, tubas
soam,
Instrumentos de guerra tudo atroam.
49
"Bem
como quando a flama, que ateada
Foi nos áridos campos
(assoprando
O sibilante Bóreas) animada
Co'o vento, o
seco mato vai queimando;
A pastoral companha, que deitada
Co'o
doce sono estava, despertando
Ao estridor do fogo que se
ateia,
Recolhe o fato, e foge para a aldeia:
50
"Desta
arte o Mouro atônito e torvado,
Toma sem tento as armas mui
depressa;
Não foge; mas espera confiado,
E o ginete
belígero arremessa.
O Português o encontra
denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atravessa:
Uns caem
meios mortos, e outros vão
A ajuda convocando do
Alcorão.
51
"Ali se vêem
encontros temerosos,
Para se desfazer uma alta serra,
E os
animais correndo furiosos
Que Neptuno amostrou ferindo a
terra.
Golpes se dão medonhos e forçosos;
Por
toda a parte andava acesa a guerra:
Mas o de Luso arnês,
couraça e malha
Rompe, corta, desfaz, abola e
talha.
52
"Cabeças pelo campo vão
saltando
Braços, pernas, sem dono e sem sentido;
E
doutros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto
amortecido.
Já perde o campo o exército
nefando;
Correm rios de sangue desparzido,
Com que também
do campo a cor se perde,
Tornado carmesi de branco e verde.
53 Origem das Armas de Portugal
"Já
fica vencedor o Lusitano,
Recolhendo os troféus e presa
rica;
Desbaratado e roto o Mauro Hispano,
Três dias o
grão Rei no campo fiei.
Aqui pinta no branco escudo
ufano,
Que agora esta vitória certifica,
Cinco escudos
azuis esclarecidos,
Em sinal destes cinco Reis vencidos,
54
"E
nestes cinco escudos pinta os trinta
Dinheiros por que Deus fora
vendido,
Escrevendo a memória em vária
tinta,
Daquele de quem foi favorecido.
Em cada uni dos cinco,
cinco pinta,
Porque assim fica o número cumprido,
Contando
duas vezes o do meio,
Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio.
55 Tomada de Leiria, Arronches e Santarém
"Passado
já algum tempo que passada
Era esta grão vitória,
o Rei subido
A tomar vai Leiria, que tomada
Fora, mui pouco
havia, do vencido.
Com esta a forte Arronches sojugada
Foi
juntamente, e o sempre enobrecido
Scalabicastro, cujo campo
ameno,
Tu, claro Tejo, regas tão sereno.
56 Mafra, Sintra
"A estas nobres vilas
sometidas,
Ajunta também Mafra, em pouco espaço,
E
nas serras da Lua conhecidas,
Sojuga a fria Sintra o duro
braço;
Sintra, onde as Naiades, escondidas
Nas fontes,
vão fugindo ao doce laço,
Onde Amor as enreda
brandamente,
Nas águas acendendo fogo ardente.
57 Lisboa
"E tu, nobre Lisboa, que no
Mundo
Facilmente das outras és princesa,
Que edificada
foste do facundo,
Por cujo engano foi Dardânia acesa;
Tu,
a quem obedece o mar profundo,
Obedeceste à força
Portuguesa,
Ajudada também da forte armada,
Que das
Boreais partes foi mandada.
58
Cruzados que
iam Combater os Turcos
"Lá do Germânico Albis, e
do Rene,
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o povo
Sarraceno,
Muitos com tensão santa eram partidos.
Entrando
a boca já do Tejo ameno,
Co'o arraial do grande Afonso
unidos,
Cuja alta fama então subia aos Céus,
Foi
posto cerco tos muros Ulisseus.
59 Tomada de Lisboa
"Cinco vezes a Lua se
escondera,
E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Quando a
cidade entrada se rendera
Ao duro cerco, que lhe estava posto.
Foi a batalha tão sanguina e fera,
Quanto obrigava o
firme pressuposto
De vencedores ásperos e ousados,
E de
vencidos já desesperados.
60
"Desta
arte enfim tomada se rendeu
Aquela que, nos tempos já
passados,
A grande força nunca obedeceu
Dos frios povos
Cíticos ousados,
Cujo poder a tanto se estendeu
Que o
Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
E enfim co'o Bétis tanto
alguns puderam
Que à terra de Vandália nome deram.
61 Óbidos. Alenquer. Torres Vedras.
"Que
cidade tão forte por ventura
Haverá que resista, se
Lisboa
Não pôde resistir à força dura
Da gente, cuja fama tanto voa?
Já lhe obedece toda a
Estremadura,
Óbidos, Alenquer, por onde soa
O tom das
frescas águas, entre as pedras,
Que murmurando lava, e
Torres Vedras.
62 Elvas. Moura. Serpa. Alcácere-do-Sal
"E
vós também, ó terras Transtaganas,
Afamadas
co'o dom da flava Ceres,
Obedeceis às forças mais
que humanas,
Entregando-lhe os muros e os poderes.
E tu,
lavrador Mouro, que te enganas,
Se sustentar a fértil terra
queres;
Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas,
E
Alcácere-do-Sal estão rendidas.
63 Évora
"Eis a nobre Cidade, certo
assento
Do rebelde Sertório antigamente,
Onde ora as
águas nítidas de argento
Vem sustentar de longo a
terra e a gente,
Pelos arcos reais, que cento e cento
Nos ares
se alevantam nobremente,
Obedeceu por meio e ousadia
De
Giraldo, que medos não temia.
64 Beja
"Já na cidade Beja vai
tomar
Vingança de Trancoso destruída
Afonso, que
não sabe sossegar,
Por estender coa fama a curta vida.
Não
se lhe pode muito sustentar
A cidade; mas sendo já
rendida,
Em toda a cousa viva a gente irada
Provando os fios
vai da dura espada.
65 Palmela e Cezimbra
"Com estas sojugada
foi Palmela,
E a piscosa Cezimbra, e juntamente,
Sendo ajudado
mais de sua estrela,
Desbarata um exército
potente:
Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela,
Que a
socorrê-la vinha diligente
Pela fralda da serra,
descuidado
Do temeroso encontro inopinado.
66 Badajoz
"O Rei de Badajoz era alto
Mouro,
Com quatro mil cavalos furiosos,
Inúmeros peões,
d'armas e de ouro
Guarnecidos, guerreiros e lustrosos.
Mas,
qual no mês de Maio o bravo touro,
Co'os ciúmes da
vaca, arreceosos,
Sentindo gente o bruto e cego amante
Salteia
o descuidado caminhante:
67
"Desta arte
Afonso súbito mostrado
Na gente dá, que passa bem
segura,
Fere, mata, derriba denodado;
Foge o Rei Mouro, e só
da vida cura.
Dum pânico terror todo assombrado,
Só
de segui-lo o exército procura;
Sendo estes que fizeram
tanto abalo
Não mais que só sessenta de cavalo.
68
Cerco de Badajoz
"Logo segue a vitória sem
tardança
O grão Rei incansábil,
ajuntando
Gentes de todo o Reino, cuja usança
Era andar
sempre terras conquistando.
Cercar vai Badajoz, e logo alcança
O
fim de seu desejo, pelejando
Com tanto esforço, e arte, e
valentia,
Que a fez fazer às outras companhia.
69
"Mas
o alto Deus, que para longe guarda
O castigo daquele que o
merece,
Ou, para que se emende, às vezes tarda,
Ou por
segredos que homem não conhece,
Se até que sempre o
forte Rei resguarda
Dos perigos a que ele se oferece;
Agora lhe
não deixa ter defesa
Da maldição da mãe
que estava presa.
70 Afonso Henriques é Feito Prisioneiro
dos
Leoneses
"Que estando na cidade, que cercara,
Cercado
nela foi dos Lioneses,
Porque a conquista dela lhe tomara,
De
Lião sendo, e não dos Portugueses.
A pertinácia
aqui lhe custa cara,
Assim como acontece muitas vezes,
Que em
ferros quebra as pernas, indo aceso
A batalha, onde foi vencido e
preso.
71
"Ó famoso Pompeio, não
te pene
De teus feitos ilustres a ruína,
Nem ver que a
justa Némesis ordene
Ter teu sogro de ti vitória
dina,
Posto que o frio Fásis, ou Siene,
Que para nenhum
cabo a sombra inclina,
O Bootes gelado e a linha ardente,
Temessem
o teu nome geralmente.
72
"Posto que a
rica Arábia e que os ferozes
Eníocos e Colcos, cuja
fama
O Véu dourado estende, e os Capadoces,
E Judeia,
que um Deus adora e ama,
E que os moles Sofenos, e os
atroces
Cilícios, com a Arménia, que derrama
As
águas dos dous rios, cuja fonte
Está noutro mais
alto e santo monte;
73 Afonso é Vencido pelo Genro,
Fernando
II, Rei de Leão
"E posto enfim que desde o mar
de Atlante
Até o Cítico Tauro monte erguido,
Já
vencedor te vissem, não te espanto
Se o campo Emátio
só te viu vencido,
Porque Afonso verás, soberbo e
ovante,
Tudo render-se ser depois rendido.
Assim o quis o
conselho alto e celeste,
Que vença o sogro a ti, e o genro
a este.
74 Afonso é Posto em Liberdade
"Tornado
o Rei sublime finalmente,
Do divino Juízo castigado,
Depois
que em Santarém soberbamente
Em vão dos Sarracenos
foi cercado,
E depois que do mártire Vicente
O
santíssimo corpo venerado
Do Sacro Promontório
conhecido
A cidade Ulisseia foi trazido;
75 Sancho
"Porque levasse avante seu
desejo,
Ao forte filho manda o lasso velho
Que às terras
se passasse d'Alentejo,
Com gente e co'o belígero
aparelho.
Sancho, d'esforço o d'ânimo sobejo,
Avante
passa, e faz correr vermelho
O rio que Sevilha vai regando,
Co'o
sangue Mauro, bárbaro e nefando.
76
"E
com esta vitória cobiçoso,
Já não
descansa o moço até que veja
Outro estrago como
este, temeroso,
No Bárbaro que tem cercado Beja.
Não
tarda muito o Príncipe ditoso
Sem ver o fim daquilo que
deseja.
Assim estragado o Mouro, na vingança
De tantas
perdas põe sua esperança.
77 Guerra com os Mouros
"Já se
ajuntam do monte a quem Medusa
O corpo fez perder, que teve o
Céu;
Já vem do promontório de Ampelusa
E
do Tinge, que assento foi de Anteu.
O morador de Abila não
se escusa,
Que também com suas armas se moveu,
Ao som da
Mauritana e ronca tuba,
Todo o Reino que foi do nobre Juba.
78 D. Sancho é Cercado em Santarém
"Entrava
com toda esta companhia
O Miralmomini em Portugal;
Treze Reis
mouros leva de valia,
Entre os quais tem o ceptro imperial;
E
assim fazendo quanto mal podia,
O que em partes podia fazer
mal,
Dom Sancho vai cercar em Santarém;
Porém não
lhe sucede muito bem.
79
"Dá-lhe
combates ásperos, fazendo
Ardis de guerra mil o Mouro
iroso;
Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
Mina
secreta, aríete forçoso:
Porque o filho de Afonso
não perdendo
Nada do esforço e acordo generoso,
Tudo
provê com ânimo e prudência;
Que em toda a parte
há esforço e resistência.
80 Socorre Afonso ao Filho Sancho
"Mas o
velho, a quem tinham já obrigado
Os trabalhosos anos ao
sossego,
Estando na cidade, cujo prado
Enverdecem as águas
do Mondego,
Sabendo como o filho está cercado
Em
Santarém do Mauro povo cego,
Se parte diligente da
cidade;
Que não perde a presteza coa idade.
81 Derrota dos Mouros
"E coa famosa gente à
guerra usada
Vai socorrer o filho; e assim ajuntados,
A
Portuguesa fúria costumada
Em breve os Mouros tem
desbaratados.
A campina, que toda está coalhada
De
marlotas, capuzes variados,
De cavalos, jaezes, presa rica,
De
seus senhores mortos cheia fica.
82
"Logo
todo o restante se partiu
De Lusitânia, postos em fugida;
O
Miralmomini só não fugiu,
Porque, antes de fugir,
lhe foge a vida.
A quem lhe esta vitória permitiu
Dão
louvores e graças sem medida:
Que em casos tão
estranhos claramente
Mais peleja o favor de Deus que a gente.
83 Morte de Afonso Henriques
"De tamanhas
vitórias triunfava
O velho Afonso , Príncipe
subido,
Quando, quem tudo enfim vencendo andava,
Da larga e
muita idade foi vencido.
A pálida doença lhe
tocava
Com fria mão o corpo enfraquecido;
E pagaram seus
anos deste jeito
A triste Libitina seu direito.
84
"Os
altos promontórios o choraram,
E dos rios as águas
saudosas
Os semeados campos alagaram
Com lágrimas
correndo piedosas.
Mas tanto pelo mundo se alargaram
Com faina
suas obras valerosas,
Que sempre no seu Reino chamarão
"Afonso,
Afonso" os ecos, mas em vão.
85
"Sancho,
forte mancebo, que ficara
Imitando seu pai na valentia,
E que
em sua vida já se exprimentara,
Quando o Bétis de
sangue se tingia,
E o bárbaro poder desbaratara
Do
Ismaelita Rei de Andaluzia;
E mais quando os que Beja em vão
cercaram,
Os golpes de seu braço em si provaram;
86 Cerco de Silves por D. Sancho
"Depois que
foi por Rei alevantado,
Havendo poucos anos que reinava,
A
cidade de Silves tem cercado,
Cujos campos o bárbaro
lavrava.
Foi das valentes gentes ajudado
Da Germânica
armada que passava,
De armas fortes e gente apercebida,
A
recobrar Judeia já perdida.
87 Auxílio Prestado a D. Sancho pelos Cruzados,
na
Tomada de Silves
"Passavam a ajudar na santa
empresa
O roxo Federico, que moveu
O poderoso exército
em defesa
Da cidade onde Cristo padeceu,
Quando Guido, coa
gente em sede acesa,
Ao grande Saladino se rendeu,
No lugar
onde aos Mouros sobejavam
As águas que os de Guido
desejavam.
88
"Mas a formosa armada, que
viera
Por contraste de vento àquela parte,
Sancho quis
ajudar na guerra fera,
Já que em serviço vai do
santo Marte.
Assim como a seu pai acontecera
Quando tomou
Lisboa, da mesma arte
Do Germano ajudado Silves toma,
E o bravo
morador destrue e doma.
89 Conquista de Tu
"E se tantos troféus
do Mahometa
Alevantando vai, também do forte
Lionês
não consente estar quieta
A terra, usada aos casos de
Mavorte,
Até que na cerviz seu jugo meta
Da soberba Tui,
que a mesma sorte
Viu ter a muitas vilas suas vizinhas,
Que,
por armas, tu, Sancho, humildes tinhas.
90 Morte de Sancho I. Sucede-lhe Afonso
II.
Alcácere-do-Sal
"Mas
entre tantas palmas salteado
Da temerosa morte, fica herdeiro
Um
filho seu, de todos estimado,
Que foi segundo Afonso, e Rei
terceiro.
No tempo deste, aos Mouros foi tomado
Alcácere-do-Sal
por derradeiro;
Porque dantes os Mouros o tomaram,
Mas agora
estruídos o pagaram.
91 Sancho II. Sua Deposição
"Morto
depois Afonso, lhe sucede
Sancho segundo, manso e descuidado,
Que
tanto em seus descuidos se desmede,
Que de outrem, quem mandava,
era mandado.
De governar o Reino, que outro pede,
Por causa dos
privados foi privado,
Porque, como por eles se regia,
Em todos
os seus vícios consentia.
92
"Não
era Sancho, não, tão desonesto
Como Nero, que um
moço recebia
Por mulher, e depois horrendo incesto
Com a
mãe Agripina cometia;
Nem tão cruel às gentes
e molesto,
Que a cidade queimasse onde vivia,
Nem tão
mau como foi Heliogabalo,
Nem como o mole Rei
Sardanapalo.
93
"Nem era o povo seu
tiranizado,
Como Sicília foi de seus tiranos;
Nem tinha
como Fálaris achado
Gênero de tormentos inumanos;
Mas
o Reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A
Rei não obedece, nem consente,
Que não for mais que
todos excelente.
94 Afonso III, o Conde Bolonhês
"Por
esta causa o Reino governou
O Conde Bolonhês, depois
alçado
Por Rei, quando da vida se apartou
Seu irmão
Sancho, sempre ao ócio dado.
Este, que Afonso o bravo, se
chamou,
Depois de ter o Reino segurado,
Em dilatá-lo
cuida, que em terreno
Não cabe o altivo peito, tão
pequeno.
95 Conquista do Algarve
"Da terra dos
Algarves, que lhe fora
Em casamento dada, grande parte
Recupera
co'o braço, e deita fora
O Mouro, mal querido já de
Marte.
Este de todo fez livre e senhora
Lusitânia, com
força e bélica arte;
E acabou de oprimir a nação
forte,
Na terra que aos de Luso coube em sorte.
96 Dom Dinis
"Eis depois vem Dinis, que bem
parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
Com quem a fama
grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o
Reino próspero florece
(Alcançada já a paz
áurea divina)
Em constituições, leis e
costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.
97 Fundação da Universidade de Coimbra
"Fez
primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de
Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar do
Monde-o a fértil erva.
Quanto pode de Atenas
desejar-se,
Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Aqui as capelas
dá tecidas de ouro,
Do bácaro e do sempre verde
louro.
98 Afonso IV
"Nobres vilas de novo
edificou
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quase o Reino todo
reformou
Com edifícios grandes, e altos muros.
Mas
depois que a dura Átropos cortou
O fio de seus dias já
maduros,
Ficou-lhe o filho pouco obediente,
Quarto Afonso, mas
forte e excelente.
99
"Este sempre as
soberbas Castelhanas
Co'o peito desprezou firme e sereno,
Porque
não é das forças Lusitanas,
Temer poder
maior, por mais pequeno.
Mas porém, quando as gentes
Mauritanas,
A possuir o Hespérico terreno
Entraram pelas
terras de Castela,
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.
100 Preparam-se os Mouros para Invadir Castela
"Nunca
com Semirâmis gente tanta
Veio os campos idáspicos
enchendo,
Nem Atila, que Itália toda espanta,
Chamando-se
de Deus açoute horrendo,
Gótica gente trouxe tanta,
quanta
Do Sarraceno bárbaro estupendo,
Co'o poder
excessivo de Granada,
Foi nos campos Tartésios
ajuntada.
Afonso XI, de Castela, pede Auxílio a Afonso IV,
seu Sogro
101
"E vendo o Rei sublime Castelhano
A
força inexpugnábil, grande e forte,
Temendo mais o
fim do povo hispano,
Já perdido uma vez, que a própria
morte,
Pedindo ajuda ao forte Lusitano,
Lhe mandava a caríssima
consorte,
Mulher de quem a manda, e filha amada
Daquele a cujo
Reino foi mandada.
102 Vai à Portugal a Rainha de Castela
"Entrava
a formosíssima Maria
Pelos paternais paços
sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em
lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos
ebúrneos ombros espalhados:
Diante do pai ledo, que a
agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:
Súplica da Rainha de Castela ao Pai, Afonso IV de
Portugal
103
"Quantos povos a terra
produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão
Rei de Marrocos conduziu
Para vir possuir a nobre Espanha:
Poder
tamanho junto não se viu,
Depois que o salso mar a terra
banha.
Trazem ferocidade, e furor tanto,
Que a vivos medo, e a
mortos faz espanto.
104
"Aquele
que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co'o
pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura
espada;
E se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás
dele e do Reino ser privada,
Viúva e triste, e posta em
vida escura,
Sem marido, sem Reino, e sem ventura.
105
"Portanto,
ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se
congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
A miseranda
gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De
pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que se não
corres,
Pode ser que não aches quem socorres."
106
"Não de outra sorte a
tímida Maria
Falando está, que a triste Vênus,
quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Para Eneias, seu
filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia
Que, caído
das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe
concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
107 Batalha do Solado
"Mas já co'os
esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão
coalhados:
Lustra co'o Sol o arnês, a lança, a
espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados.
A canora
trombeta embandeirada,
Os corações à paz
acostumados
Vai às fulgentes armas incitando,
Pelas
concavidades retumbando.
108
"Entre
todos no meio se sublima,
Das insígnias Reais
acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o
colo alevantado;
E somente co'o gesto esforça e anima
A
qualquer coração amedrontado.
Assim entra nas terras
de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.
109
"Juntos
os dous Afonsos finalmente
Nos campos de Tarifa estão
defronte
Da grande multidão da cega gente,
Para quem são
pequenos campo e monte.
Não há peito tão alto
e tão potente,
Que de desconfiança não se
afronte,
Enquanto não conheça e claro veja
Que
co'o braço dos seus Cristo peleja.
110
"Estão
de Agar os netos quase rindo
Do poder dos Cristãos fraco e
pequeno,
As terras como suas repartindo
Antemão, entre o
exército Agareno,
Que com título falso
possuindo
Está o famoso nome Sarraceno.
Assim também
com falsa conta e nua,
À nobre terra alheia chamam
sua.
111
"Qual o membrudo e bárbaro
Gigante,
Do rei Saul, com causa, tão temido,
Vendo o
pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço
apercebido,
Com palavras soberbas o arrogante
Despreza o fraco
moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
Quanto
mais pode a Fé que a força humana:
112
"Desta
arte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos,
e não entende
Que está ajudado da Alta Fortaleza,
A
quem o inferno horrífico se rende.
Co ela o Castelhano, e
com destreza
De Marrocos o Rei comete e ofende.
O Português,
que tudo estima em nada,
Se f az temer ao Reino de
Granada.
113
"Eis as lanças e
espadas retiniam
Por cima dos arneses: bravo estrago!
Chamam
(segundo as leis que ali seguiam)
Uns Mafamede, e os outros
Santiago.
Os feridos com grita o Céu feriam,
Fazendo de
seu sangue bruto lago,
Onde outros meios mortos se
afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.
114
"Com
esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que, em
pouco espaço,
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe
valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal
vitória tão barata
Inda não bem contente o
forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Que
pelejando está co'o Mauritano.
115 Derrota dos Mouros
"Já se ia o
Sol ardente recolhendo
Para a casa de Tethys, e inclinado
Para
o Ponente, o Véspero trazendo,
Estava o claro dia
memorado,
Quando o poder do Mauro grande e horrendo
Foi pelos
fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortandade, que a
memória
Nunca no mundo viu tão grã
vitória.
116
"Não matou a
quarta parte o forte Mário
Dos que morreram neste
vencimento,
Quando as águas co'o sangue do adversário
Fez
beber ao exército sedento;
Nem o Peno asperíssimo
contrário
Do Romano poder, de nascimento,
Quando tantos
matou da ilustro Roma,
Que alqueires três de anéis
dos mortos toma.
117
"E se tu tantas
almas só pudeste
Mandar ao Reino escuro de Cocito,
Quando
a santa Cidade desfizeste
Do povo pertinaz no antigo
rito:
Permissão e vingança foi celeste,
E não
força de braço, ó nobre Tito,
Que assim dos
Vates foi profetizado,
E depois por Jesu certificado.
118 Inês de Castro
"Passada esta tão
próspera vitória,
Tornando Afonso à Lusitana
terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube
ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória,
Que
do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e
mesquinha
Que depois de ser morta foi Rainha.
119
"Tu
só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações
humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como
se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede
tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
]É porque
queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue
humano.
120
"Estavas, linda Inês,
posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele
engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar
muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos
nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome
que no peito escrito tinhas.
121
"Do teu
Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma
lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos
teus fermosos se apartavam:
De noite em doces sonhos, que
mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam.
E quanto enfim
cuidava, e quanto via,
Eram tudo memórias de
alegria.
12
"De outras belas senhoras e
Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo enfim,
tu, puro amor, despreza,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo
estas namoradas estranhezas
O velho pai sesudo, que respeita
O
murmurar do povo, e a fantasia
Do filho, que casar-se não
queria,
123
"Tirar Inês ao mundo
determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co'o
sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo
aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde
sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra
uma fraca dama delicada?
124
"Traziam-na
os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a
piedade:
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à
morte crua o persuade.
Ela com tristes o piedosas vozes,
Saídas
só da mágoa, e saudade
Do seu Príncipe, e
filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a
magoava,
125 Súplica de Inês de Castro ao Re
"Para
o Céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos
piedosos,
Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um
dos duros ministros rigorosos;
E depois nos meninos atentando,
Que
tão queridos tinha, e tão mimosos,
Cuja orfandade
como mãe temia,
Para o avô cruel assim dizia:
126
"Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel
de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas
aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças
viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como coa mãe
de Nino já mostraram,
E colos irmãos que Roma
edificaram;
127
"Ó tu, que
tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma
donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O
coração a quem soube vencê-la)
A estas
criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte
escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não
move a culpa que não tinha.
128
"E
se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo
e ferro,
Sabe também dar vicia com clemência
A
quem para perdê-la não fez erro.
Mas se to assim
merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e
mísero desterro,
Na Cítia f ria, ou lá na
Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva
eternamente.
129
"Põe-me onde se
use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e vere Se neles
achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não
achei:
Ali com o amor intrínseco e vontade
Naquele por
quem morro, criare Estas relíquias suas que aqui viste,
Que
refrigério sejam da mãe triste."
130 Morte de Inês de Castro
"Queria
perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas
o pertinaz povo, e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não
perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom
tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos
carniceiros,
Feros vos amostrais, e cavaleiros?
131
"Qual
contra a linda moça Policena,
Consolação
extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a
condena,
Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela os olhos
com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na
mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício
se oferece:
132
"Tais contra Inês os brutos matadores
No colo de
alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de
amores
Aquele que depois a fez Rainha;
As espadas banhando, e
as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se
encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo
não cuidosos.
133
"Bem puderas, ó
Sol, da vista destes
Teus raios apartar aquele dia,
Como da
seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu
comia.
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A
voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe
ouvistes,
Por muito grande espaço repetisses!
134
"Assim
como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e
bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a
trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal
está morta a pálida donzela,
Secas do rosto as
rosas, e perdida
A branca e viva cor, coa doce vida.
135
"As
filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando
memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As
lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que
inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que
fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a
água, e o nome amores.
136 Vingança de Pedro
"Não
correu muito tempo que a vingança
Não visse Pedro
das mortais feridas,
Que, em tomando do Reino a governança,
A
tomou dos fugidos homicidas.
Do outro Pedro cruíssimo os
alcança,
Que ambos, imigos das humanas vidas,
O concerto
fizeram, duro e injusto,
Que com Lépido e Antônio fez
Augusto.
137 Pedro I, o Cru
"Este, castigador foi
rigoroso
De latrocínios, mortes e adultérios:
Fazer
nos maus cruezas, fero e iroso,
Eram os seus mais certos
refrigérios.
As cidades guardando justiçoso
De
todos os soberbos vitupérios,
Mais ladrões
castigando à morte deu,
Que o vagabundo Aleides ou Teseu.
138 D. Fernando
"Do justo e duro Pedro nasce
o brando,
(Vede da natureza o desconcerto!)
Remisso, e sem
cuidado algum, Fernando,
Que todo o Reino pôs em muito
aperto:
Que, vindo o Castelhano devastando
As terras sem
defesa, esteve perto
De destruir-se o Reino totalmente;
Que um
fraco Rei f az fraca a forte gente.
139 Leonor Teles
"Ou foi castigo claro do
pecado
De tirar Lianor a seu marido,
E casar-se com ela, de
enlevado
Num falso parecer mal entendido;
Ou foi que o coração
sujeito e dado
Ao vício vil, de quem se viu rendido,
Mole
se fez e fraco; e bem parece,
Que um baixo amor os fortes
enfraquece.
140
"Do pecado tiveram
sempre a pena
Muitos, que Deus o quis, e permitiu:
Os que foram
roubar a bela Helena,
E com Apio também Tarquilio o
viu.
Pois por quem David Santo se condena?
Ou quem o Tribo
ilustre destruiu
De Benjamim? Bem claro no-lo ensina
Por Sara
Faraó, Siquém por Dina.
141 Marco Antônio. Aníbal
"E
pois se os peitos fortes enfraquece
Um inconcesso amor
desatinado,
Bem no filho de Alcmena se parece,
Quando em Ônfale
andava transformado.
De Marco Antônio a faina se
escurece
Com ser tanto a Cleopatra afeiçoado.
Tu também,
Peno próspero, o sentiste
Depois que uma moça vil na
Apúlia viste.
142 O Poder do Amor
"Mas quem pode livrar-se
por ventura
Dos laços que Amor arma brandamente
Entre as
rosas e a neve humana pura,
O ouro e o alabastro
transparente?
Quem de uma peregrina formosura,
De um vulto de
Medusa propriamente,
Que o coração converte, que tem
preso,
Em pedra não, mas em desejo aceso?
143
"Quem
viu um olhar seguro, um gesto brando,
Uma suave e angélica
excelência,
Que em si está sempre as almas
transformando,
Que tivesse contra ela resistência?
Desculpado
por certo está Fernando,
Para quem tem de amor
experiência;
Mas antes, tendo livre a fantasia,
Por muito
mais culpado o julgaria.
CANTO IV
1 Continua a narração do Gama ao rei de
Melinde
"Depois de procelosa tempestade,
Noturna
sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena
claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o sol
a negra escuridade,
Removendo o temor do pensamento:
Assim no
Reino forte aconteceu,
Depois que o Rei Fernando faleceu.
2 Dom João
"Porque, se muito os
nossos desejaram
Quem os danos e ofensas vá
vingando
Naqueles que tão bem se aproveitaram
Do
descuido remisso de Fernando,
Depois de pouco tempo o
alcançaram,
Joane, sempre ilustre, alevantando
Por Rei,
como de Pedro único herdeiro,
(Ainda que bastardo)
verdadeiro.
3
"Ser isto ordenação
dos céus divina,
Por sinais muito claros se mostrou,
Quando
em Évora a voz de uma menina,
Ante tempo falando o
nomeou;
E como cousa enfim que o Céu destina,
No berço
o corpo e a voz alevantou:
"Portugal! Portugal!"
alçando a mão
Disse "pelo Rei novo, Dom João."
4 Motins. Morte do conde Andeiro,
amante da
rainha Leonor Teles
"Alteradas então do Reino
as gentes
Co'o ódio, que ocupado os peitos tinha,
Absolutas
cruezas e evidentes
Faz do povo o furor por onde vinha;
Matando
vão amigos e parentes
Do adúltero Conde e da
Rainha,
Com quem sua incontinência desonesta
Mais (depois
de viúva) manifesta.
5
"Mas ele
enfim, com causa desonrado,
Diante dela a ferro frio morre,
De
outros muitos na morte acompanhado,
Que tudo o fogo erguido queima
e corre:
Quem, como Astianás, precipitado,
(Sem lhe
valerem ordens) de alta torre,
A quem ordens, nem aras, nem
respeito;
Quem nu por ruas, e em pedaços feito.
6 Leonor Teles chama em seu
socorro o
genro, D. João I de Castela
"Podem-se pôr
em longo esquecimento
As cruezas mortais que Roma viu
Feitas do
feroz Mário e do cruento
Sila, quando o contrário
lhe fugiu.
Por isso Lianor, que o sentimento
Do morto Conde ao
mundo descobriu,
Faz contra Lusitânia vir Castela,
Dizendo
ser sua filha herdeira dela.
7 Prepara-se o rei de Castela para invadir Portugal
"Beatriz
era a filha, que casada
Co'o Castelhano está, que o Reino
pede,
Por filha de Fernando reputada,
Se a corrompida fama lhe
concede.
Com esta voz Castela alevantada,
Dizendo que esta
filha ao pai sucede,
Suas forças ajunta para as guerras
De
várias regiões e várias terras.
8 Descrição da Espanha
Vem de toda
a província que de um Brigo
(Se foi) já teve o nome
derivado;
Das terras que Fernando e que Rodrigo
Ganharam do
tirano e Mauro estado.
Não estimam das armas o perigo
Os
que cortando vão co'o duro arado
Os campos Lioneses, cuja
gente
C'os Mouros foi nas armas excelente.
9 Províncias de Espanha
"Os Vândalos,
na antiga valentia
Ainda confiados, se ajuntavam
Da cabeça
de toda Andaluzia,
Que do Guadalquibir as águas lavam.
A
nobre Ilha também se apercebia,
Que antigamente os Tírios
habitavam,
Trazendo por insígnias verdadeiras
As
Hercúleas colunas nas bandeiras.
10
"Também
vem lá do Reino de Toledo,
Cidade nobre e antiga, a quem
cercando
O Tejo em torno vai suave e ledo
Que das serras de
Conca vem manando.
A vós outros também não
tolhe o medo,
Ó sórdidos Galegos, duro bando,
Que
para resistirdes vos armastes,
Aqueles, cujos golpes já
provasses.
11
"Também movem da
guerra as negras fúrias
A gente Biscainha, que carece
De
polidas razões, e que as injúrias
Muito mal dos
estranhos compadece.
A terra de Guipúscua e das
Astúrias,
Que com minas de ferro se enobrece,
Armou dele
os soberbos moradores,
Para ajudar na guerra a seus senhores.
12 Aconselha-se o rei de Portugal
com os
principais do reino
"Joane, a quem do peito o esforço
cresce,
Como a Sansão Hebréio da guedelha,
Posto
que tudo pouco lhe parece,
Co'os poucos de seu Reino se
aparelha;
E não porque conselho lhe falece,
Co'os
principais senhores se aconselha,
Mas só por ver das gentes
as sentenças:
Que sempre houve entre muitos
diferenças.
13
"Não falta
com razões quem desconcerte
Da opinião de todos, na
vontade,
Em quem o esforço antigo se converte
Em
desusada e má deslealdade;
Podendo o temor mais, gelado,
inerte,
Que a própria e natural fidelidade:
Negam o Rei
e a pátria, e, se convém,
Negarão (como
Pedro) o Deus que têm.
14 Nuno Álvares Pereira
"Mas nunca
foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Alvares; mas
antes,
Posto que em seus irmãos tão claro o
visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Aquelas duvidosas
gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão
na espada, irado, e não facundo,
Ameaçando a terra,
o mar e o mundo:
15 Fala de Nuno Álvares Pereira
"Como!
Da gente ilustre Portuguesa
Há-de haver quem refuse o
pátrio Marte?,
Como! Desta província, que
princesa
Foi das gentes na guerra em toda a parte,
Há-de
sair quem negue ter defesa?
Quem negue a Fé, o amor, o
esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O
próprio Reino queira ver sujeito?
16
"Como!
Não seis vós inda os descendentes
Daqueles, que
debaixo da bandeira
Do grande Henriques, feros e
valentes,
Vencestes esta gente tão guerreira?
Quando
tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que
sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que
tiveram?
17
"Com quem foram
contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por
Dinis e seu filho, sublimados,
Senão co'os vossos fortes
pais, e avôs?
Pois se com seus descuidos, ou
pecados,
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
Torne-vos
vossas forças o Rei novo:
Se é certo que co'o Rei se
muda o povo.
18
"Rei tendes tal,
que se o valor tiverdes
Igual ao Rei que agora
alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a
quem já desbaratasses.
E se com isto enfim vos não
moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a
vosso vão receio,
Que eu só resistirei ao jugo
alheio.
19
"Eu só com meus vassalos, e
com esta
(E dizendo isto arranca meia espada)
Defenderei da
força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada.
Em
virtude do Rei, da pátria mesta,
Da lealdade já por
vós negada,
Vencerei (não só estes
adversários)
Mas quantos a meu Rei forem
contrários."
20
Bem como
entre os mancebos recolhidos
Em Canúsio, relíquias
sós de Canas,
Já para se entregar quase movidos
A
fortuna das forças Africanas,
Cornélio moço
os faz que, compelidos
Da sua espada, jurem que as Romanas
Armas
não deixarão, enquanto a vida
Os não deixar,
ou nelas for perdida:
21 Preparativos de Guerra
"Destarte a gente
força e esforça Nuno,
Que, com lhe ouvir as últimas
razões,
Removem o temor frio, importuno,
Que gelados
lhe tinha os corações.
Nos animais cavalgam de
Neptuno,
Brandindo e volteando arremessões;
Vão
correndo e gritando a boca aberta:
"Viva o famoso Rei
que nos liberta!"
22
"Das
gentes populares, uns aprovam
A guerra com que a pátria se
sustinha;
Uns as armas alimpam e renovam,
Que a ferrugem da paz
gastadas tinha;
Capacetes estofam, peitos provam,
Arma-se cada
um como convinha;
Outros fazem vestidos de mil cores,
Com
letras e tenções de seus amores.
23
"Com
toda esta lustrosa companhia
Joane forte sai da fresca
Abrantes,
Abrantes, que também da fonte fria
Do Tejo
logra as águas abundantes.
Os primeiros armígeros
regia
Quem para reger era os mui possantes
Orientais exércitos,
sem conto,
Com que passava Xerxes o Helesponto.
24 Ordem de batalha
"Dom Nuno Alvares digo,
verdadeiro
Açoute de soberbos Castelhanos
Como já
o fero Huno o foi primeiro
Para Franceses, para Italianos.
Outro
também famoso cavaleiro,
Que a ala direita tem dos
Lusitanos,
Apto para mandá-los, e regê-los,
Mem
Rodrigues se diz de Vasconcelos.
25
"E
da outra ala, que a esta corresponde,
Antão Vasques de
Almada é capitão,
Que depois foi de Abranches nobre
Conde,
Das gentes vai regendo a sestra mão.
Logo na
retaguarda não se esconde
Das quinas e castelos o
pendão,
Com Joane, Rei forte em toda parte,
Que
escurecendo o preço vai de Alarte.
26
"Estavam
pelos muros, temerosas,
E de um alegre medo quase frias,
Rezando
as mães, irmãs, damas e esposas,
Prometendo jejuns e
romarias.
Já chegam as esquadras belicosas
Defronte das
amigas companhias,
Que com grita grandíssima os recebem,
E
todas grande dúvida concebem.
27
"Respondem
as trombetas mensageiras,
Pífaros sibilantes e
atambores;
Alférezes volteam as bandeiras,
Que variadas
são de muitas cores.
Era no seco tempo, que nas eiras
Ceres
o fruto deixa aos lavradores,
Entra em Astreia o Sol, no mês
de Agosto,
Baco das uvas tira o doce mosto.
28 Começa a batalha
"Deu sinal a
trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o
o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de
medroso;
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o
Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil
escutaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
29
"Quantos
rostos ali se vêem sem cor,
Que ao coração
acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
É
maior muitas vezes que o perigo;
E se o não é,
parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro amigo
Faz não
sentir que é perda grande e rara,
Dos membros corporais, da
vida cara.
30 Proeza de Nuno Álvares Pereira
"Começa-se
a travar a incerta guerra;
De ambas partes se move a primeira
ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros
as esperanças de ganhá-la;
Logo o grande Pereira, em
quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba, e
encontra, e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo
alheia.
31
"Já pelo espesso ar os
estridentes
Farpões, setas e vários tiros
voam;
Debaixo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a
terra, os vales soam;
Espedaçam-se as lanças; e as
frequentes
Quedas coas duras armas, tudo atroam;
Recrescem os
amigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
32
"Eis
ali seus irmãos contra ele vão,
(Caso feio e cruel!)
mas não se espanta,
Que menos é querer matar o
irmão,
Quem contra o Rei e a Pátria se
alevanta:
Destes arrenegados muitos são
No primeiro
esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes
(caso estranho!)
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno.
33 Sertório. Coriolano. Catilina.
"Ó
tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós
outros dos antigos,
Que contra vossas pátrias, com
profano
Coração, vos fizestes inimigos,
Se lá
no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos
castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns
tredores houve algumas vezes.
34
"Rompem-se
aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está
ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo
leão,
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os
campos vão correr de Tetuão:
Perseguem-no com as
lanças, e ele iroso,
Torvado um pouco está, mas não
medroso.
35
"Com torva vista os vê,
mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as
costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se
arremessa, que recrescem.
Tal está o cavaleiro, que a
verdura
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus,
que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.
36 Dom João
"Sentiu Joane a afronta
que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo
corria e via, e a todos dava,
Com presença e palavras,
coração.
Qual parida leoa, fera e brava,
Que os
filhos que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto
pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos
furtara;
37
"Corre raivosa, e freme, e
com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal
Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à
primeira ala:
"Ó fortes companheiros, ó
subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas
terras, que a esperança
Da liberdade está na vossa
lança.
38
"Vedes-me aqui,
Rei vosso, e companheiro,
Que entre as lanças, e setas, e
os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro:
Pelejai,
verdadeiros Portugueses!"
Isto disse o magnânimo
guerreiro,
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força
tira; e, deste único tiro,
Muitos lançaram o último
suspiro.
39
"Porque eis os seus acesos
novamente
Duma nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre qual mais
com ânimo valente
Perigos vencerá do Márcio
jogo,
Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente;
Rompem malhas
primeiro, e peitos logo:
Assim recebem junto e dão
feridas,
Como a quem já não dói perder as
vidas.
40 Perdas Castelhanas
"A muitos mandam ver o
Estígio lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava:
O
Mestre morre ali de Santiago,
Que fortíssimamente
pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago,
Outro
Mestre cruel de Calatrava;
Os Pereiras também
arrenegados
Morrem, arrenegando o Céu e os
fados.
41
"Muitos também do vulgo
vil sem nome
Vão, e também dos nobres, ao
profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem
das almas que passam deste mundo.
E porque mais aqui se amanse e
dome
A soberba do amigo furibundo,
A sublime bandeira
Castelhana
Foi derribada aos pés da Lusitana.
42 Desbarato do rei de Castela
"Aqui a fera
batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A
multidão da gente que perece
Tem as flores da própria
cor mudadas;
Já as costas dão e as vidas; já
falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de
Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito
mudado.
43
"O campo vai deixando ao
vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no
os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés,
mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da
morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra, e
triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.
44
"Alguns
vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no
mundo;
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso
e sitibundo,
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura
às penas do profundo,
Deixando tantas mães, tantas
esposas
Sem filhos, sem maridos, desditosas.
45 Pasa Nuno Álvares ao Alentejo e Andaluzia
"O
vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande
glória;
Com ofertas depois, e romarias,
As graças
deu a quem lhe deu vitória.
Mas Nuno, que não quer
por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão
por armas sempre soberanas,
Para as terras se passa
Transtaganas.
46
"Ajuda-o seu destino de
maneira
Que fez igual o efeito ao pensamento,
Porque a terra
dos Vândalos fronteira
Lhe concede o despojo e o
vencimento.
Já de Sevilha a Bética bandeira
E de
vários senhores num momento
Se lhe derriba aos pés,
sem ter defesa
Obrigados da força Portuguesa.
47 Pazes
"Destas e outras vitórias
longamente
Eram os Castelhanos oprimidos,
Quando a paz,
desejada já da gente,
Deram os vencedores aos
vencidos,
Depois que quis o Padre onipotente
Dar os Reis
inimigos por maridos
As duas ilustríssimas
Inglesas,
Gentis, formosas, ínclitas princesas.
48 Tomada de Ceuta por Dom João
"Não
sofre o peito forte, usado à guerra,
Não ter amigo
já a quem faça dano;
E assim não tendo a quem
vencer na terra,
Vai cometer as ondas do Oceano.
Este é
o primeiro Rei que se desterra
Da Pátria, por fazer que o
Africano
Conheça, pelas armas, quanto excede
A lei de
Cristo à lei de Mafamede.
49
"Eis
mil nadantes aves pelo argento
Da furiosa Tethys inquieta
Abrindo
as pandas asas vão ao vento,
Para onde Alcides pôs a
extrema meta.
O monte Abila e o nobre fundamento
De Ceita toma,
e o torpe Mahometa
Deita fora, e segura toda Espanha
Da
Juliana, má, e desleal manha.
50 Morte de Dom João
"Não
consentiu a morte tantos anos
Que de Herói tão
ditoso se lograsse
Portugal, mas os coros soberanos
Do Céu
supremo quis que povoasse.
Mas para defensão dos
Lusitanos
Deixou, quem o levou quem governasse,
E aumentasse a
terra mais que dantes,
Inclita geração, altos
Infantes.
51 Dom Duarte
"Não foi do Rei Duarte
tão ditoso
O tempo que ficou na suma alteza,
Que assim
vai alternando o tempo iroso
O bem co'o mal, o gosto coa
tristeza.
Quem viu sempre um estado deleitoso?
Ou quem viu em
fortuna haver firmeza?
Pois inda neste Reino e neste Re
Não ousou ela tanto desta lei.
52 O infante Dom Fernando
"Viu ser cativo o
santo irmão Fernando,
Que a tão altas empresas
aspirava,
Que, por salvar o povo miserando
Cercado, ao
Sarraceno se entregava.
Só por amor da pátria está
passando
A vida de senhora feita escrava,
Por não se dar
por ele a forte Ceita:
Mais o público bem que o seu
respeita.
53 Cativeiro do infante
"Codro, porque o
inimigo não vencesse,
Deixou antes vencer da morte a
vida;
Régulo, porque a pátria não
perdesse,
Quis mais a liberdade ver perdida.
Este, porque se
Espanha não temesse,
Ao cativeiro eterno se convida:
Codro,
nem Cúrcio, ouvido por espanto,
Nem os Décios leais
fizeram tanto.
54 Afonso V
"Mas Afonso, do Reino único
herdeiro,
Nome em armas ditoso em nossa Hespéria,
Que a
soberba do bárbaro fronteira
Tornou em baixa e humílima
miséria,
Fora por certo invicto cavaleiro,
Se não
quisera ir ver a terra Ibéria.
Mas África dirá
ser impossíbil
Poder ninguém vencer o Rei terríbil.
55 Conquistas em África: Alcácer, Tânger
e Arzila
"Este pôde colher as maçãs
de ouro,
Que somente o Tiríntio colher pôde:
Do
jugo que lhe pôs, o bravo Mouro
A cerviz inda agora não
sacode.
Na fronte a palma leva e o verde louro
Das vitórias
do Bárbaro, que acode
A defender Alcácer, forte
vila,
Tângere populoso e a dura Arzila.
56
"Porém
elas enfim por força entradas,
Os muros abaixaram de
diamante
As Portuguesas forças, costumadas
A derribarem
quanto acham diante.
Maravilhas em armas estremadas,
E de
escritura dinas elegante,
Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Mais
afinando a fama Portuguesa.
57 Guerra contra Fernando de Aragão
"Porém
depois, tocado de ambição
E glória de mandar,
amara e bela,
Vai cometer Fernando de Aragão,
Sobre o
potente Reino de Castela.
Ajunta-se a inimiga multidão
Das
soberbas e várias gentes dela,
Desde Cádis ao alto
Pireneu,
Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.
58 Batalha de Toro
"Não quis ficar
nos Reinos ocioso
O mancebo Joane, e logo ordena
De ir ajudar o
pai ambicioso,
Que então lhe foi ajuda não
pequena.
Saiu-se enfim do trance perigoso
Com fronte não
torvada, mas serena,
Desbaratado o pai sanguinolento
Mas ficou
duvidoso o vencimento.
59
"Porque o
filho sublime e soberano,
Gentil, forte, animoso cavaleiro,
Nos
contrários fazendo imenso dano,
Todo um dia ficou no campo
inteiro.
Desta arte foi vencido Octaviano,
E Antônio
vencedor, sem companheiro,
Quando daqueles que César
mataram
Nos Filípicos campos se vingaram.
60 D. João I
"Porém depois que
a escura noite eterna
Afonso aposentou no Céu sereno,
O
Príncipe, que o Reino então governa,
Foi Joane
segundo e Rei trezeno.
Este, por haver fama sempiterna,
Mais do
que tentar pode homem terreno
Tentou, que foi buscar da roxa
Aurora
Os términos, que eu vou buscando agora.
61 Explorações terrestres, em busca da
Índia
"Manda seus mensageiros, que
passaram
Espanha, França, Itália celebrada,
E lá
no ilustre porto se embarcaram
Onde já foi Parténope
enterra a:
Nápoles, onde os Xados se mostraram,
Fazendo-a
a várias gentes subjugada,
Pola ilustrar no fim de tantos
anos
Co'o senhorio de ínclitos Hispanos.
62
"Pelo
mar alto Sículo navegam;
Vão-se às praias de
Rodes arenosas;
E dali às ribeiras altas chegam,
Que com
morte de Magno são famosas;
Vão a Mênfis e às
terras, que se regam
Das enchentes Nilóticas undosas;
Sobem
à Etiópia, sobre Egito,
Que de Cristo lá
guarda o santo rito.
63
"Passam também
as ondas Eritreias,
Que o povo de Israel sem nau passou;
Ficam-lhe
atrás as serras Nabateias,
Que o filho de Ismael co'o nome
ornou.
As costas odoríferas Sabeias,
Que a mãe do
belo Adónis tanto honrou,
Cercam, com toda a Arábia
descoberta
Feliz , deixando a Pétrea e a
Deserta.
64
"Entram no estreito Pérsico,
onde dura
Da confusa Babel inda a memória;
Ali co'o
Tigre o Eufrates se mistura,
Que as fontes onde nascem tem por
glória.
Dali vão em demanda da água pura,
Que
causa inda será de larga história,
Do Indo, pelas
ondas do Oceano,
Onde não se atreveu passar
Trajano.
65
"Viram gentes incógnitas
e estranhas
Da Índia, da Carmânia e Gedrosia,
Vendo
vários costumes, várias manhas,
Que cada região
produze e cria.
Mas de vias tão ásperas,
tamanhas,
Tornar-se facilmente não podia:
Lá
morreram enfim, e lá ficaram,
Que à desejada pátria
não tornaram.
66 D. Manuel
"Parece que guardava o claro
Céu
A Manuel, e seus merecimentos,
Esta empresa tão
árdua, que o moveu
A subidos e ilustres movimentos:
Manuel,
que a Joane sucedeu
No Reino e nos altivos pensamentos,
Logo,
corno tornou do Reino o cargo,
Tomou mais a conquista do mar
largo.
67 O sonho de D. Manuel
"O qual, como do
nobre pensamento
Daquela obrigação, que lhe
ficara
De seus antepassados, (cujo intento
Foi sempre
acrescentar a terra cara)
Não deixasse de ser um só
momento
Conquistado: no tempo que a luz clara
Foge, e as
estrelas nítidas, que saem,
A repouso convidam quando
caem,
68
"Estando já deitado no
áureo leito,
Onde imaginações mais certas
são?
Revolvendo contino no conceito
Seu ofício e
sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono
aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque,
tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe
aparece.
69 Os rios Indo e Gange
"Aqui se lhe
apresenta que subia
Tão alto, que tocava a prima
Esfera,
Donde diante vários mundos via,
Nações
de muita gente estranha e fera;
E lá bem junto donde nasce
o dia,
Depois que os olhos longos estendera,
Viu de antigos,
longínquos e altos montes
Nascerem duas claras e altas
fontes.
70
"Aves agrestes, feras e
alimárias,
Pelo monte selvático habitavam;
Mil
árvores silvestres e ervas várias
O passo e o tracto
às gentes atalhavam.
Estas duras montanhas, adversárias
De
mais conversação, por si mostravam
Que, desque Adão
pecou aos nossos anos,
Não as romperam nunca pés
humanos.
71
"Das águas se lhe antolha que
saíam,
Para ele os largos passos inclinando,
Dois
homens, que mui velhos pareciam,
De aspecto, inda que agreste,
venerando:
Das pontas dos cabelos lhe caíam
Gotas, que o
corpo vão banhando;
A cor da pele baça e
denegrida,
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.
72
"Dambos
de dois a fronte coroada
Ramos não conhecidos e ervas
tinha;
Um deles a presença traz cansada,
Como quem de
mais longe ali caminha.
E assim a água, com ímpeto
alterada,
Parecia que doutra parte vinha,
Bem como Alfeu de
Arcádia em Siracusa
Vai buscar os abraços de
Aretusa.
73 Fala do Ganges a D. Manoel
"Este, que era
o mais grave na pessoa,
Destarte para o Rei de longe brada:
"Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo
está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja
cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já
mandes
A receber de nós tributos grandes.
74 Profecias
"Eu sou o ilustre
Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço
verdadeiro;
Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra
Que
vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-te-emos contudo
dura guerra;
Mas insistindo tu, por derradeiro,
Com não
vistas vitórias, sem receio,
A quantas gentes vês,
porás o freio."
75
"Não
disse mais o rio ilustre e santo,
Mas ambos desaparecem num
momento.
Acorda Emanuel c'um novo espanto
E grande alteração
de pensamento.
Estendeu nisto Febo o claro manto
Pelo escuro
Hemisfério sonolento;
Veio a manhã no céu
pintando as cores
De pudibunda rosa e roxas flores.
76 Reúne D. manuel e seu conselho
"Chama
o Rei os senhores a conselho,
E propõe-lhe as figuras da
visão;
As palavras lhe diz do santo velho,
Que a todos
foram grande admiração.
Determinam o náutico
aparelho,
Para que com sublime coração
Vá
a gente que mandar cortando os mares
A buscar novos climas, novos
ares.
77 Vasco da Gama
"Eu, que bem mal cuidava
que em efeito
Se pusesse o que o peito me pedia,
Que sempre
grandes cousas deste jeito
Pressago o coração me
prometia,
Não sei por que razão, por que
respeito,
Ou por que bom sinal que em mi se via,
Me põe
o ínclito Rei nas mãos a chave
Deste cometimento
grande e grave.
Comete o rei ao Gama a empresa do
descobrimento
marítimo do caminho para a Índia
78
"E com rogo o palavras amorosas,
Que é
um mando nos Reis, que a mais obriga,
Me disse: "As
cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e
com fadiga;
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde
e que periga;
Que, quando ao medo infame não se
rende,
Então, se menos dura, mais se estende.
79
Resposta do Gama
"Eu vos tenho entre todos
escolhido
Para uma empresa, qual a vós se deve,
Trabalho
ilustre, duro e esclarecido,
O que eu sei que por mi vos será
leve."
Não sofri mais, mas logo: "Ó
Rei subido,
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
É tão
pouco por vós, que mais me pena
Ser esta vida cousa tão
pequena.
80
"Imaginai tamanhas
aventuras,
Quais Euristeu a Alcides inventava,
O leão
Cleoneu, Harpias duras,
O porco de Erimanto, a Hidra brava,
Descer
enfim às sombras vãs e escuras
Onde os campos de
Dite a Estige lava;
Porque a maior perigo, a mor afronta,
Por
vós, ó Rei, o espírito e a carne é
pronta."
81 Paulo da Gama
"Com mercês
sumptuosas me agradece
E com razões me louva esta
vontade;
Que a virtude louvada vive e cresce,
E o louvor altos
casos persuade.
A acompanhar-me logo se oferece,
Obrigado
d'amor e d'amizade,
Não menos cobiçoso de honra e
fama,
O caro meu irmão Paulo da Gama.
82 Nicolau Coelho
"Mais se me ajunta Nicolau
Coelho,
De trabalhos mui grande sofredor;
Ambos são de
valia e de conselho,
De experiência em armas e furor.
Já
de manceba gente me aparelho,
Em que cresce o desejo do
valor;
Todos de grande esforço; e assim parece
Quem a
tamanhas cousas se oferece.
83
"Foram de
Emanuel remunerados,
Porque com mais amor se apercebessem,
E
com palavras altas animados
Para quantos trabalhos
sucedessem.
Assim foram os Mínias ajuntados,
Para que o
Véu dourado combatessem,
Na fatídica Nau, que ousou
primeira
Tentar o mar Euxínio, aventureira.
84 Preparativos para a partida da expedição do
Gama
"E já no porto da ínclita
Ulisseia
C'um alvoroço nobre, e é um desejo,
(Onde
o licor mistura e branca areia
Co'o salgado Neptuno o doce
Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor
nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de
Marte
Estão para seguir-me a toda parte.
85 Na praia de Belém
"Pelas praias
vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias
artes,
E não menos de esforço aparelhados
Para
buscar do inundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos
sossegados
Ondeam os aéreos estandartes;
Elas prometem,
vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas como a de
Argos.
86
"Depois de aparelhados desta
sorte
De quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhamos a alma
para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o
sumo Poder que a etérea corte
Sustenta só coa vista
veneranda,
Imploramos favor que nos guiasse,
E que nossos
começos aspirasse.
87 Cortejo
"Partimo-nos assim do santo
templo
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome
tem da terra, para exemplo,
Donde Deus foi em carne ao mundo
dado.
Certifico-te, ó Rei, que se contemplo
Como fui
destas praias apartado,
Cheio dentro de dúvida e
receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.
88 Procissão
"A gente da cidade
aquele dia,
(Uns por amigos, outros por parentes,
Outros por
ver somente) concorria,
Saudosos na vista e descontentes.
E nós
coa virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em
procissão solene a Deus orando,
Para os batéis
viemos caminhando.
89 Adeus e lágrimas
"Em tão
longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam;
As
mulheres cum choro piedoso,
Os homens com suspiros que
arrancavam;
Mães, esposas, irmãs, que o
temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperarão,
e frio medo
De já nos não tornar a ver tão
cedo.
90
"Qual vai dizendo: "
Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério,
e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em
choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera
e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A
fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes
mantimento!"
91
"Qual em
cabelo: "Ó doce e amado esposo,
Sem quem não
quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa
vida que é minha, e não é vossa?
Como por um
caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão
doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis
que com as velas leve o vento?"
92
"Nestas
e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os
velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe
a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de
alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que
em multidão com elas se igualavam.
93
"Nós
outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa,
neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do
propósito firme começado,
Determinei de assim nos
embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é
de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
94 O velho do Restelo
"Mas um velho
d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos
em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça,
descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós
no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências
feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
"Ó
glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se
atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que
castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão
que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas!
96
"Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de
desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De
fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre,
chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te
Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio
engana!
97
"A que novos desastres
determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que
mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que
promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão
facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que
triunfos, que palmas, que vitórias?
98
"Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo
pecado e desobediência,
Não somente do reino
soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas
inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples
inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro
e d'armas te deitou:
99
"Já
que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já
que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e
valentia,
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo
da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu
tanto perdê-la quem a dá:
100
"Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre
terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio
a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não
tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais
desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se
queres por vitórias ser louvado?
101
"Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar
outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se
enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o
incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te
lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia,
Pérsia, Arábia e de Etiópia?
102
"Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs
em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é
justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto
e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê
por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e
glória.
103
"Trouxe o
filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito
humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em
desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E
quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre
não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
104
"Não cometera o moço miserando
O carro alto do
pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um,
nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e
nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa
intentado a humana geração.
Mísera sorte,
estranha condição!"
CANTO V
1 Parte de Belém a expedição do
Gama
"Estas sentenças tais o velho
honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e
sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é
já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu
ferimos,
Dizendo: "Boa viagem", logo o vento
Nos
troncos fez o usado movimento.
2
"Entrava
neste tempo o eterno lume
No animal Nemeio truculento,
E o
mundo, que com tempo se consume,
Na sexta idade andava enfermo e
lento:
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do sol
quatorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.
3
"Já
a vista pouco e pouco se desterra
Daqueles pátrios montes
que ficavam;
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Sintra, e
nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada
terra
O coração, que as mágoas lá
deixavam;
E já depois que toda se escondeu,
Não
vimos mais enfim que mar e céu.
4 Em alto mar
"Assim fomos abrindo aqueles
mares,
Que geração alguma não abriu,
As
novas ilhas vendo e os novos ares,
Que o generoso Henrique
descobriu;
De Mauritânia os montes e lugares,
Terra que
Anteu num tempo possuiu,
Deixando à mão esquerda;
que à direita
Não há certeza doutra, mas
suspeita.
5 Ilha da Madeira
"Passamos a grande Ilha da
Madeira,
Que do muito arvoredo assim se chama,
Das que nós
povoamos, a primeira,
Mais célebre por nome que por
fama:
Mas nem por ser do mundo a derradeira
Se lhe aventajam
quantas Vênus ama,
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De
Cipro, Gnido, Pafos e Citera.
6 Costa da Barbaria. Os Azenegues
"Deixamos
de Massília a estéril costa,
Onde seu gado os
Azenegues pastam,
Gente que as frescas águas nunca
gosta
Nem as ervas do campo bem lhe abastam:
A terra a nenhum
fruto enfim disposta,
Onde as aves no ventre o ferro
gastam,
Padecendo de tudo extrema inópia,
Que aparta a
Barbaria de Etiópia.
7 Senegal e o Cabo Verde
"Passamos o limite
aonde chega
O Sol, que para o Norte os carros guia,
Onde jazem
os povos a quem nega
O filho de Climene a cor do dia.
Aqui
gentes estranhas lava e rega
Do negro Sanagá a corrente
fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se
dos nossos Cabo Verde.
8 Canárias
"Passadas tendo já
as Canárias ilhas,
Que tiveram por nome
Fortunadas,
Entramos, navegando, pelas filhas
Do velho
Hespério, Hespérides chamadas;
Terras por onde novas
maravilhas
Andaram vendo já nossas armadas.
Ali tomamos
porto com bom vento,
Por tomarmos da terra mantimento.
9 Ilha de Santiago
"Aquela ilha apartamos,
que tomou
O nome do guerreiro Santiago,
Santo que os Espanhóis
tanto ajudou
A fazerem nos Mouros bravo estrago.
Daqui, tanto
que Bóreas nos ventou,
Tornamos a cortar o imenso lago
Do
salgado Oceano, e assim deixamos
A terra onde o refresco doce
achamos.
10 Jalofo. Mandinga
"Por aqui
rodeando a larga parte
De África, que ficava ao Oriente,
A
província Jalofo, que reparte
Por diversas nações
a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o
metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas
bebe,
As quais o largo Atlântico recebe.
11 Dórcadas
"As Dórcadas
passamos, povoadas
Das Irmãs, que outro tempo ali
viviam,
Que de vista total sendo privadas,
Todas três dum
só olho se serviam.
Tu só, tu, cujas tranças
encrespadas
Netuno lá nas águas acendiam,
Tornada
já de todas a mais feia,
De bívoras encheste a
ardente areia.
12 Serra Leoa. Cabo das Palmas. Ilha de São
Tomé.
"Sempre enfim para o Austro a aguda
proa
No grandíssimo gólfão nos
metemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o cabo a
quem das Palmas nome demos.
O grande rio, onde batendo soa
O
mar nas praias notas que ali temos,
Ficou, com a Ilha ilustre que
tomou
O nome dum que o lado a Deus tocou.
13 Congo. Rio Zaire. Equador.
"Ali o mui
grande reino está de Congo,
Por nós já
convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa,
claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto.
Por este largo
mar enfim me alongo
Do conhecido pólo de Calisto,
Tendo
o término ardente já passado,
Onde o meio do mundo é
limitado.
14 O Cruzeiro do Sul
"Já descoberto
tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova
estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns
tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E,
por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde ainda
se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.
15 As ursas
"Assim passando aquelas
regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dois invernos
fazendo e dois verões,
Enquanto corre dum ao outro
Pólo,
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que
sempre f az no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, apesar de
Juno,
Banharem-se nas águas de Netuno.
16 Casos maravilhosos
"Contar-te longamente
as perigosas
Coisas do mar, que os homens não
entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados
que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites
tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não
menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz
de ferro.
17
"Os casos vi que os rudos
marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam
por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pela
aparência,
E que os que têm juízos mais
inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência,
Vêem
do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos, ou mal
entendidos.
18 O fogo de Santelmo
"Vi, claramente visto,
o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo
Em tempo
de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste
pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e coisa
certo de alto espanto,
Ver as nuvens do mar com largo cano
Sorver
as altas águas do Oceano.
19 A tromba marítima
"Eu o vi
certamente (e não presumo
Que a vista me enganava)
levantar-se
No ar um vaporzinho e subtil fumo,
E, do vento
trazido, rodear-se:
Daqui levado um cano ao pólo sumo
Se
via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não
podia:
Da matéria das nuvens parecia.
20
"Ia-se
pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo masto se
engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes
grandes de água em si chupava;
Estava-se coas ondas
ondeando:
Em cima dele uma nuvem se espessava,
Fazendo-se
maior, mais carregada
Co'o cargo grande dágua em si
tomada.
21
"Qual roxa sanguessuga se
veria
Nos beiços da alimária (que
imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co'o
sangue alheio a sede ardente;
Chupando mais e mais se engrossa e
cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande
coluna, enchendo, aumenta
A si, e a nuvem negra que
sustenta.
22
"Mas depois que de todo se
fartou,
O pó que tem no mar a si recolhe,
E pelo céu
chovendo enfim voou,
Porque coa água a jacente água
molhe:
As ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal
lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura,
Que
segredos são estes de Natura.
23
"Se
os antigos filósofos, que andaram
Tantas terras, por ver
segredos delas,
As maravilhas que eu passei, passaram,
A tão
diversos ventos dando as velas,
Que grandes escrituras que
deixaram!
Que influição de signos e de estrelas!
Que
estranhezas, que grandes qualidades!
E tudo sem mentir, puras
verdades.
24 Ilha de Santa Helena
"Mas já o
Planeta que no céu primeiro
Habita, cinco vezes
apressada,
Agora meio rosto, agora inteiro
Mostrara, enquanto o
mar cortava a armada,
Quando da etérea gávea um
marinheiro,
Pronto coa vista, "Terra! Terra!"
brada.
Salta no bordo alvoroçada a gente
Co'os olhos no
horizonte do Oriente.
25
"A maneira de
nuvens se começam
A descobrir os montes que enxergamos;
As
âncoras pesadas se adereçam;
As velas, já
chegados, amainamos.
E para que mais certas se conheçam
As
partes tão remotas onde estamos,.
Pelo novo instrumento do
Astrolábio,
Invenção de subtil juízo e
sábio,
26 Desembarque na baía de Santa Helena
"Desembarcamos
logo na espaçosa,
Parte, por onde a gente se espalhou,
De
ver eousas estranhas desejosa
Da terra que outro povo não
pisou;
Porém eu co'os pilotos na arenosa
Praia, por
vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do Sol a altura
E
compassar a universal pintura.
27 Aprisionamento de um indígena
"Achamos
ter de todo já passado
Do Semicapro peixe a grande
meta,
Estando entre ele e o círculo gelado
Austral,
parte do mundo mais secreta.
Eis, de meus companheiros
rodeado,
Vejo um estranho vir de pele preta,
Que tomaram por
força, enquanto apanha
De mel os doces favos na
montanha.
28
"Torvado vem na vista, como
aquele
Que não se vira nunca em tal extremo;
Nem ele
entende a nós, nem nós a ele,
Selvagem mais que o
bruto Polifemo.
Começo-lhe a mostrar da rica pelo
De
Colcos o gentil metal supremo,
A prata fina, a quente
especiaria:
A nada disto o bruto se movia.
29 Soltam o indígena
"Mando
mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas de cristalino
transparente,
Alguns soantes cascavéis pequenos,
Um
barrete vermelho, cor contente.
Vi logo, por sinais e por
acenos,
Que com isto se alegra grandemente.
Mando-o soltar com
tudo, e assim caminha
Para a povoação que perto
tinha.
30 Na baía de Santa Helena
"Mas logo
ao outro dia, seus parceiros,
Todos nus, e da cor da escura
treva,
Descendo pelos ásperos outeiros,
As peças
vêm buscar que estoutro leva:
Domésticos já
tanto e companheiros
Se nos mostram, que fazem que se
atreva
Fernão Veloso a ir ver da terra o trato
E
partir-se com eles pelo mato.
31 Aventura de Fernão Veloso
"É
Veloso no braço confiado,
E de arrogante crê que vai
seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em
que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada,
co'o cuidado
No aventureiro, eis pelo monto duro
Aparece, e,
segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.
32
"O
batel de Coelho foi depressa
Pelo tomar; mas, antes que
chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que
não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se
em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo
eu logo, e enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro
descoberto.
33 Escaramuça com os indígenas
"Da
espessa nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros sem
medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que
esta perna trouxe eu dali ferida;
Mas nós, como pessoas
magoadas,
A resposta lhe demos tão tecida,
Que, em mais
que nos barretes, se suspeita
Que a cor vermelha levam desta
feita.
34
"E sendo já, Veloso em
salvamento,
Logo nos recolhemos para a armada,
Vendo a malícia
feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem
nenhum melhor conhecimento
Pudemos ter da índia
desejada
Que estarmos ainda muito longe dela;
E assim tornei a
dar ao vento a vela.
35
"Disse então
a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir)
"Ó
lá, Veloso amigo, aquele outeiro
É melhor de descer
que de subir."
"Sim, é, (responde o ousado
aventureiro)
Mas quando eu para cá vi tantos vir
Daqueles
cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis
cá sem
36
"Contou então
que, tanto que passaram
Aquele monte, os negros de quem
falo,
Avante mais passar o não deixaram,
Querendo, se
não torna, ali matá-lo;
E tornando-se, logo se
emboscaram,
Por que, saindo nós para tomá-lo,
Nos
pudessem mandar ao reino escuro,
Por nos roubarem mais a seu
seguro.
37 Continua a navegação
"Porém
já cinco Sóis eram passados
Que dali nos
partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prósperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite
estando descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que
os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.
38 O Adamastor
"Tão temerosa vinha e
carregada,
Que pôs nos corações um grande
medo;
Bramindo o negro mar, de longe brada
Como se desse em vão
nalgum rochedo.
"Ó Potestade, disse,
sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima
e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?"
39
"Não acabava, quando
uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De
disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba
esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má,
e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os
cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40
"Tão
grande era de membros, que bem posso
Certificar-te, que este era o
segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete
milagres foi do mundo:
Com um tom de voz nos fala horrendo e
grosso,
Que pareceu sair do mar profundo:
Arrepiam-se as carnes
e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
41 Fala de Adamastor aos portugueses
"E
disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No
mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e
tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os
vedados términos quebrantas,
E navegar meus longos mares
ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e
tenho,
Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:
42 Fala do Adamastor
"Pois vens ver
os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A
nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal
merecimento,
Ouve os danos de mim, que apercebidos
Estão
a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra,
Que
ainda hás de sojugar com dura guerra.
43 Profecias do Adamastor
"Sabe que
quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem
Com ventos e tormentas
desmedidas.
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas
ondas insofridas,
Eu farei d'improviso tal castigo,
Que seja
mor o dano que o perigo.
44 Bartolomeu Dias. Naufrágios.
"Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me
descobriu, suma vingança.
E não se acabará
só nisto o dano
Da vossa pertinace confiança;
Antes
em vossas naus vereis cada ano,
Se é verdade o que meu
juízo alcança,
Naufrágios, perdições
de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte.
45 Dom Francisco de Almeida
"É
do primeiro Ilustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os
Céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos
incógnitos de Deus.
Aqui porá da Turca armada
dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de
seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com
Mombaça.
46 Manoel de Sousa de Sepúlveda
e
sua mulher dona Leonor
"Outro também
virá de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E
consigo trará a formosa dama
Que Amor por grã mercê
lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste
terreno meu, que duro e irado
Os deixará dum cru naufrágio
vivos
Para verem trabalhos excessivos.
47
"Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor
gerados e nascidos;
Verão os Cafres ásperos e
avaros
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos
membros e perclaros
A calma, ao frio, ao ar verão
despidos,
Depois de ter pisada longamente
Co'os delicados pés
a areia ardente.
48
"E verão
mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os
dois amantes míseros ficarem
Na férvida e implacável
espessura.
Ali, depois que as pedras abrandarem
Com lágrimas
de dor, de mágoa pura,
Abraçados as almas
soltarão
Da formosa e misérrima prisão."
49 Adamastor narra ao Gama sua vida
"Mais ia
por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando
alçado
Lhe disse eu: Quem és tu? que esse
estupendo
Corpo certo me tem maravilhado.
A boca e os
olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me
respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe
pesara:
50
"Eu sou aquele oculto
e grande Cabo,
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que
nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio, e
quantos passaram, fui notório.
Aqui toda a Africana costa
acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo
Antarctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.
51 Guerra dos Gigantes contra Júpiter
"Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado,
Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra
o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra
sobre serra,
Mas conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão
do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava.
52 Amor de Adamastor por Tétis
"Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha
empresa.
Todas as Deusas desprezei do céu,
Só por
amar das águas a princesa.
Um dia a vi coas filhas de
Nereu
Sair nua na praia, e logo presa
A vontade senti de tal
maneira
Que ainda não sinto coisa que mais queira.
53
"Como fosse impossível alcançá-la
Pela
grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la,
E a Doris este caso manifesto.
De medo a Deusa então
por mim lhe fala;
Mas ela, com um formoso riso honesto,
Respondeu:
"Qual será o amor bastante
De Ninfa que
sustente o dum Gigante?
54 Adamastor e Tétis
"Contudo,
por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira,
Com
que, com minha honra, escuse o dano."
Tal resposta me torna a
mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano,
(Que é
grande dos amantes a cegueira)
Encheram-me com grandes abondanças
O peito de desejos e esperanças.
55
"Já néscio, já da guerra desistindo,
Uma
noite de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto
lindo
Da branca Tétis única despida:
Como doido
corri de longe, abrindo
Os braços, para aquela que era
vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar,
as faces e os cabelos.
56
"Ó
que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos
braços quem amava,
Abraçado me achei com um duro
monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando com
um penedo fronte a fronte,
Que eu pelo rosto angélico
apertava
Não fiquei homem não, mas mudo e quedo,
E
junto dum penedo outro penedo.
57 Adamastor e Tétis
"Ó
Ninfa, a mais formosa do Oceano,
Já que minha presença
não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou
fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?
Daqui me parto irado, e quase
insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro
inundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se
risse,
58 Castigo de Adamastor
"Eram já
neste tempo meus irmãos
Vencidos e em miséria
extrema postos;
E por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns
a vários montes sotopostos:
E como contra o Céu não
valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei
a sentir do fado inimigo
Por meus atrevimentos o castigo.
59 Transformação de Adamastor no
Cabo das
Tormentas
"Converte-se-me a carne em terra
dura,
Em penedos os ossos se fizeram,
Estes membros que vês
e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim,
minha grandíssima estatura
Neste remoto cabo converteram
Os
Deuses, e por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis
cercando destas águas."
60
"Assim
contava, e com um medonho choro
Súbito diante os olhos se
apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoro
Bramido muito
longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos
anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse
os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.
61 Na angra de São Brás
"Já
Flegon e Piróis vinham tirando
Com os outros dois o carro
radiante,
Quando a terra alta se nos foi mostrando,
Em que foi
convertido o grão Gigante.
Ao longo desta costa,
começando
Já de cortar as ondas do Levante,
Por
ela abaixo um pouco navegamos,
Onde segunda vez terra tomamos.
62 Acorrem à praia os indígenas
"A
gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes
eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros, que tão
mal nos receberam.
Com bailos e com festas de alegria
Pela
praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso
gado
Que apascentavam, gordo e bem criado.
63 Costumes
"As mulheres queimadas vêm
em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas,
Animais que eles têm
em mais estima
Que todo o outro gado das manadas.
Cantigas
pastoris, ou prosa ou rima,
Na sua língua cantam
concertadas
Com o doce som das rústicas avenas,
Imitando
de Títiro as Camenas.
64 Continua a navegação
"Estes,
como na vista prazenteiros
Fossem, humanamente nos
trataram,
Trazendo-nos galinhas e carneiros,
A troco doutras
peças, que levaram.
Mas como nunca enfim meus
companheiros
Palavra sua alguma lhe alcançaram
Que desse
algum sinal do que buscamos,
As velas dando, as âncoras
levamos.
65 Ilhéu de Santa-Cruz
"Já
aqui tínhamos dado um grã rodeio
A costa negra de
África, e tornava
A proa a demandar o ardente meio
Do
Céu, e o pólo Antarctico ficava:
Aquele ilhéu
deixamos, onde veio
Outra armada primeira, que buscava
O
Tormentório cabo, e descoberto,
Naquele ilhéu fez
seu limite certo.
66 Correntes marítimas
Daqui
fomos cortando muitos dias
Entre tormentas tristes e bonanças,
No
largo mar fazendo novas vias,
Só conduzidos de árduas
esperanças.
Colo mar um tempo andamos em porfias,
Que,
como tudo nele são mudanças.
Corrente nele achamos
tão possante
Que passar não deixava por
diante.
67
"Era maior a força em
demasia,
Segundo para trás nos obrigava,
Do mar, que
contra nós ali corria,
Que por nós a do vento que
assoprava.
Injuriado Noto da porfia
Em que colo mar (parece)
tanto estava,
Os assopros esforça iradamente,
Com que
nos fez vencer a grão corrente.
68 Rio dos Reis
"Trazia o Sol o dia
celebrado,
Em que três Reis das partes do Oriento
Foram
buscar um Rei de pouco nado,
No qual Rei outros três há
juntamente.
Neste dia outro porto foi tomado
Por nós, da
mesma já contada gente,
Num largo rio, ao qual o no e
demos
Do dia, em que por ele nos metemos.
69
"Desta gente refresco algum tomamos,
E
do rio fresca água; mas contudo
Nenhum sinal aqui da Índia
achamos
No Povo, com nós outros quase mudo.
Ora vê,
Rei, que tamanha terra andamos,
Sem sair nunca deste povo
rudo,
Sem vermos nunca nova nem sinal
Da desejada parte
Oriental.
70 Rio dos Reis
"Ora imagina agora
coitados
Andaríamos todos, perdidos,
De fomes, de
tormentas quebrantados,
Por climas e por mares não
sabidos,
E do esperar comprido tão cansados,
Quanto a
desesperar já compelidos,
Por céus não
naturais, de qualidade
Inimiga de nossa humanidade.
71 Lealdade ao rei de Portugal
"Corrupto já
e danado o mantimento,
Danoso e mau ao fraco corpo humano,
E
além disso nenhum contentamento,
Que sequer da esperança
fosse engano.
Crês tu que, se este nosso ajuntamento
De
soldados não fora Lusitano,
Que durara ele tanto
obediente
Por ventura a seu Rei e a seu regente?
72
"Crês
tu que já não foram levantados
Contra seu Capitão,
se os resistira,
Fazendo-se piratas, obrigados
De
desesperação, de fome, de ira?
Grandemente, por
certo, estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os
tira
Daquela Portuguesa alta excelência
De lealdade
firme, e obediência.
73 Continua a navegação. Sofala.
"Deixando
o porto enfim do doce rio
E tornando a cortar a água
salgada,
Fizemos desta costa algum desvio,
Deitando para o pego
toda a armada;
Porque, ventando Noto manso e frio,
Não
nos apanhasse a água da enseada,
Que a costa faz ali
daquela banda
Donde a rica Sofala o ouro manda.
74
"Esta
passada, logo o leve leme
Encomendado ao sacro Nicolau,
Para
onde o mar na costa brada e geme,
A proa inclina duma e doutra
nau;
Quando indo o coração que espera e teme
E
que tanto fiou dum fraco pau
Do que esperava já
desesperado,
Foi duma novidade alvoroçado
75 Rio dos Bons-Sinais
"E foi que, estando
já da costa perto,
Onde as praias e vales bem se viam,
Num
rio, que ali sai ao mar aberto,
Batéis à vela
entravam e saíam.
Alegria muito grande foi por
certo
Acharmos já pessoas que sabiam
Navegar, porque
entre elas esperamos
De achar novas algumas, como achamos.
76 Os indígenas
"Etíopes são
todos, mas parece
Que com gente melhor comunicavam;
Palavra
alguma Arábia se conhece
Entre a linguagem sua que
falavam;
E com pano delgado, que se tece
De algodão, as
cabeças apertavam;
Com outro, que de tinta azul se
tinge,
Cada um as vergonhosas partes cinge.
77 Informações
"Pela Arábica
língua, que mal falam,
E que Fernão Martins muito
bem entende,
Dizem que por naus, que em grandeza igualam
As
nossas, o seu mar se corta e fende;
Mas que lá donde sai o
Sol, se abalam
Para onde a costa ao Sul se alarga e estende,
E
do Sul para o Sol, terra onde havia
Gente, assim como nós,
da cor do dia.
78 Levantam um padrão
"Muito
grandemente aqui nos alegramos
Com a gente, e com as novas muito
mais:
Pelos sinais que neste rio achamos
O nome lhe ficou dos
Bons Sinais.
Um padrão nesta terra alevantamos,
Que,
para assinalar lugares tais,
Trazia alguns; o nome tem do
belo
Guiador de Tobias a Gabelo.
79 Espalmam as naus
"Aqui de limos, cascas e
d'ostrinhos,
Nojosa criação das águas
fundas,
Alimpamos as naus, que dos caminhos
Longos do mar,
vêm sórdidas e imundas.
Dos hóspedes que
tínhamos vizinhos,
Com mostras aprazíveis e
jocundas,
louvemos sempre o usado mantimento,
Limpos de todo
o falso pensamento.
80 O escorbuto
"Mas não foi, da
esperança grande e imensa
Que nesta terra houvemos, limpa e
pura
A alegria; mas logo a recompensa
A Ramnúsia com
nova desventura.
Assim no céu sereno se dispensa:
Com
esta condição pesada e dura
Nascemos: o pesar terá
firmeza,
Mas o bem logo muda a natureza.
81
"E
foi que de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi,
desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os
ossos para sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o
creia?
Que tão disformemente ali lhe incharam
As
gengivas na boca, que crescia
A carne, e juntamente
apodrecia.
82
" Apodrecia com um
fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava;
Não
tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião subtil
menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco
instructo,
Pela carne já podre assim cortava
Como se
fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a
tinha.
83
"Enfim que nesta incógnita
espessura
Deixamos para sempre os companheiros,
Que em tal
caminho e em tanta desventura
Foram sempre conosco
aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a
sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos,
assim mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os
ossos.
84 Continua a navegação.
Moçambique. Mombaça.
"Assim que, deste
porto nos partirmos
Com maior esperança e maior tristeza,
E pela costa abaixo o mar abrirmos
Buscando algum sinal de
mais firmeza.
Na dura Moçambique enfim surgimos,
De
cuja falsidade e má vileza
Já serás sabedor,
e dos enganos
Dos povos de Mombaça pouco humanos.
85 Em Melinde
"Até que aqui no teu
seguro porto,
Cuja brandura e doce tratamento
Dará saúde
a um vivo, e vida a um morto,
Nos trouxe a piedade do alto
assento.
Aqui repouso, aqui doce conforto,
Nova quietação
do pensamento
Nos deste: e vês aqui, se atento ouviste,
Te
contei tudo quanto me pediste.
86 Encarecimento do feito dos portugueses
"Julgas
agora, Rei, se houve no mundo
Gentes que tais caminhos
cometessem?
Crês tu que tanto Eneias e o facundo
Ulisses
pelo inundo se estendessem?
Ousou algum a ver do mar profundo,
Por
mais versos que dele se escrevessem,
Do que eu vi, a poder de
esforço e de arte,
E do que ainda hei de ver, a oitava
parte?
87 Homero e Virgílio
"Esse que bebeu
tanto da água Aónia,
Sobre quem tem contenda
peregrina,
Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,
Atenas,
Ios, Argo e Salamina:
Esse outro que esclarece toda Ausónía,
A
cuja voz altíssona e divina
Ouvindo, o pátrio Míncio
se adormece,
Mas o Tibre, com o som se ensoberbece;
88
Cantem
, louvem e escrevam sempre extremos
Desses seus Semideuses, e
encareçam,
Fingindo Magis Circes, Polifemos,
Sirenas que
com o canto os adormeçam;
Dêem-lhe mais navegar à
vela e remos
Os Cicones, e a torra onde se esqueçam
Os
companheiros, em gostando o Loto;
Dêem-lhe perder nas águas
o piloto;
89 Conclui o Gama a narração ao Rei de
Melinde
"Ventos soltos lhe finjam, e imaginem
Dos
odres e Calipsos namoradas;
Harpias que o manjar lhe
contaminem;
Descer às sombras nuas já passadas:
Que
por muito e por muito que se afinem
Nestas fábulas vãs,
tão bem sonhadas,
A verdade que eu conto nua e pura
Vence
toda grandíloqua escritura."
90 Admiração pelo feito dos portugueses
Da
boca do facundo Capitão
Pendendo estavam todos
embebidos,
Quando deu fim à longa narração
Dos
altos feitos grandes e subidos.
Louva o Rei o sublime coração
Dos
Reis em tantas guerras conhecidos;
Da gente louva a antiga
fortaleza,
A lealdade de ânimo e nobreza.
91 Retira-se o rei de Melinde
Vai recontando o
povo, que se admira,
O caso cada qual que mais notou;
Nenhum
deles da gente os olhos tira,
Que tão longos caminhos
rodeou.
Mas já o mancebo Délio as rédeas
vira
Que o irmão de Lampécia mal guiou,
Por vir a
descansar nos Tétios braços;
E el-Rei se vai do mar
aos nobres paços.
92 A glória
Quão doce é o
louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando
são soados!
Qualquer nobre trabalha que em memória
Vença
ou iguale os grandes já passados.
As invejas da ilustre e
alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem
valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e
incita.
93 O gosto das letras
Não
tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandro na
peleja,
Quanto de quem o canta, os numerosos
Versos; isso só
louva, isso deseja.
Os troféus de Melcíades
famosos
Temístoeles despertam só de inveja,
E diz
que nada tanto o deleitava
Como a voz que seus feitos celebrava.
94 Virgílio
Trabalha por mostrar Vasco da
Gama
Que essas navegações que o mundo canta
Não
merecem tamanha glória e fama
Como a sua, que o céu
e a terra espanta.
Si; mas aquele Herói, que estima e
ama
Com dons, mercês,. favores e honra tanta
A lira
Mantuana, faz que soe
Eneias, e a Romana glória voe.
95 Octávio
Dá a terra lusitana
Cipiões,
Césares, Alexandros, e dá
Augustos;
Mas não lhe dá contudo aqueles dois
Cuja
falta os faz duros e robustos.
Octávio, entre as maiores
opressões,
Compunha versos doutos e venustos.
Não
dirá Fúlvia certo que é mentira,
Quando a
deixava Antônio por Glafira,
96 César, Alexandre e Cipião
Vai
César, sojugando toda França,
E as armas não
lhe impedem a ciência;
Mas , numa mão a pena e
noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança,
É nas
comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero
de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
97
Enfim,
não houve forte capitão,
Que não fosse também
douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara
nação,
Senão da Portuguesa tão
somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De
algum não ser por versos excelente,
É não se
ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não
na estima.
98 Desamor de Portugal às boas letras
Por
isso, e não por falta de natura,
Não há
também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se
este costume dura,
Pios Eneias, nem Aquiles feros.
Mas o pior
de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez, e
tão austeros,
Tão rudos, e de engenho tão
remisso,
Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso.
99 O amor à Pátria
As Musas
agradeça o nosso Gama
o Muito amor da Pátria, que as
obriga
A dar aos seus na lira nome e fama
De toda a ilustro e
bélica fadiga:
Que ele, nem quem na estirpe seu se
chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem
as filhas do Tejo, que deixassem
As telas douro fino, e que o
cantassem.
100
Porque o amor fraterno e puro
gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é
somente o pressuposto
Das Tágides gentis, e seu
respeito.
Porém não deixe enfim de ter
disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito,
Que por
esta, ou por outra qualquer via,
Não perderá seu
preço, e sua valia.
CANTO VI
1 Festejos em honra dos
portugueses
Não sabia em que modo festejasse
O
Rei Pagão os fortes navegantes,
Para que as amizades
alcançasse
Do Rei Cristão, das gentes tão
possantes;
Pesa-lhe que tão longe o aposentasse
Das
Européias terras abundantes
A ventura, que não no
fez vizinho
Donde Hércules ao mar abriu caminho.
2 Banquetes
Com jogos, danças e outras
alegrias,
A segundo a polícia Melindana,
Com usadas e
ledas pescarias,
Com que a Lageia Antônio alegra e
engana
Este famoso Rei, todos os dias,
Festeja a companhia
Lusitana,
Com banquetes, manjares desusados,
Com frutas, aves,
carnes e pescados.
3 Despede-se o Gama do rei de Melinde
Mas vendo o
Capitão que se detinha
Já mais do que devia, e o
fresco vento
O convida que parta e tome asinha
Os pilotos da
terra e mantimento,
Não se quer mais deter, que ainda
tinha
Muito para cortar do salso argento;
Já do Pagão
benigno se despede,
Que a todos amizade longa pede.
4 Afetuoso oferecimento do rei de Melinde ao Gama
Pede-lhe
mais que aquele porto seja
Sempre com suas frotas visitado,
Que
nenhum outro bem maior deseja,
Que dar a tais barões seu
reino e estado;
E que enquanto seu corpo o espírito
reja,
Estará de contino aparelhado
A pôr a vida e
reino totalmente
Por tão bom Rei, por tão sublime
gente.
5 Parte a frota para Calecu
Outras palavras tais
lhe respondia
O Capitão, o logo as velas dando,
Para as
terras da Aurora se partia,
Que tanto tempo há já
que vai buscando.
No piloto que leva não havia
Falsidade,
mas antes vai mostrando
A navegação certa, e assim
caminha
Já mais seguro do que dantes vinha.
6 Desce Baco ao reino de Netuno
As ondas
navegavam do Oriente
Já nos mares da Índia, e
enxergavam
Os tálamos do Sol, que nasce ardente;
Já
quase seus desejos se acabavam.
Mas o mau de Tioneu, que na alma
sente
As venturas, que então se aparelhavam
A gente
Lusitana, delas dina,
Arde, morre, blasfema e desatina.
7
Via
estar todo o Céu determinado
De fazer de Lisboa nova
Roma;
Não no pode estorvar, que destinado
Está
doutro poder que tudo doma.
Do Olimpo desce enfim
desesperado;
Novo remédio em terra busca e toma:
Entra
no úmido reino, e vai-se à corte
Daquele a quem o
mar caiu em sorte.
8 Descrição do reino de Netuno
No
mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se
esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas,
Quando às
iras do vento o mar responde,
Netuno mora, e moram as
jocundas
Nereidas, e outros Deuses do mar, onde
As águas
campo deixam às cidades,
Que habitam estas úmidas
deidades.
9
Descobre o fundo nunca
descoberto
Das areias ali de prata fina;
Torres altas se vêem
no campo aberto
Da transparente massa cristalina:
Quanto se
chegam mais os olhos perto,
Tanto menos a vista determina
Se é
cristal o que vê, se diamante,
Que assim se mostra claro e
radiante.
10
As portas douro fino, e
marchetadas
Do rico aljôfar que nas conchas nasce,
De
escultura formosa estão lavradas,
Na qual o irado Baco a
vista pasce;
E vê primeiro em cores variadas
Do velho
Caos a tão confusa face;
Vêem-se os quatro elementos
trasladados
Em diversos ofícios ocupados.
11
Ali
sublime o Fogo estava em cima,
Que em nenhuma matéria se
sustinha;
Daqui as coisas vivas sempre anima,
Depois que
Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele leve se sublima
O
invisível Ar, que mais asinha
Tomou lugar, e nem por quente
ou f rio,
Algum deixa no mundo estar vazio.
12
Estava
a terra em montes revestida
De verdes ervas, e árvores
floridas,
Dando pasto diverso e dando vida
As alimárias
nela produzidas.
A clara forma ali estava esculpida
Das águas
entre a terra desparzidas,
De pescados criando vários
modos,
Com seu humor mantendo os corpos todos.
13
Noutra
parte esculpida estava a guerra,
Que tiveram os Deuses com os
Gigantes;
Está Tifeu debaixo da alta serra
De Etna, que
as flamas lança crepitantes;
Esculpido se vê ferindo
a terra
Netuno, quando as gentes ignorantes
Dele o cavalo
houveram, e a primeira
De Minerva pacífica
oliveira.
14
Pouca tardança faz Lieu
irado
Na vista destas coisas, mas entrando
Nos paços de
Netuno, que avisado
Da vinda sua, o estava já
aguardando,
As portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se
estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre
no reino dágua o Rei do vinho.
15 Baco pede à Netuno que reúna o conselho
dos
deuses marinhos
"Ó Netuno, lhe disse, não
te espantes
De Baco nos teus reinos receberes,
Porque também
com os grandes e possantes
Mostra a Fortuna injusta seus
poderes.
Manda chamar os Deuses do mar, antes
Que fale mais, se
ouvir-me o mais quiseres;
Verão da desventura grandes
modos:
Ouçam todos o mal, que toca a todos."
16 Tritão
Julgando já Netuno que
seria
Estranho caso aquele, logo manda
Tritão, que chame
os Deuses da água fria,
Que o mar habitam duma e doutra
banda.
Tritão, que de ser filho se gloria
Do Rei e de
Salácia veneranda,
Era mancebo grande, negro e feio,
Trombeta de seu pai, e seu correio.
17
Os
cabelos da barba, e os que descem
Da cabeça nos ombros,
todos eram
Uns limos prenhes dágua, e bem parecem
Que nunca brando pentem conheceram;
Nas pontas pendurados não
falecem
Os negros misilhões, que ali se geram,
Na
cabeça por gorra tinha posta
Uma muito grande casca de
lagosta.
18
O corpo nu, e os membros
genitais,
Por não ter ao nadar impedimento,
Mas porém
de pequenos animais
Do mar todos cobertos cento e cento:
Camarões
e cangrejos, e outros mais
Que recebem de Febe
crescimento,
Ostras, e camarões do musgo sujos,
As
costas com a casca os caramujos.
19 Os deuses marinhos
Na mão a grande
concha retorcida
Que trazia, com força, já tocava;
A
voz grande canora foi ouvida
Por todo o mar, que longe
retumbava.
Já toda a companhia apercebida
Dos Deuses
para os paços caminhava
Do Deus, que fez os muros de
Dardânia,
Destruídos depois da Grega insânia.
20 Oceano. Nereu. Proteu.
Vinha o padre Oceano
acompanhado
Dos filhos e das filhas que gerara;
Vem Nereu, que
com Dóris foi casado,
Que todo o mar de Ninfas povoara;
O
profeta Proteu, deixando o gado
Marítimo pascer pela água
amara,
Ali veio também, mas já sabia
O que o
padre Lieu no mar queria.
21 Tethys
Vinha por outra parte a linda esposa
De
Netuno, de Celo e Vesta filha,
Grave e Ieda no gesto, e tão
formosa
Que se amansava o mar de maravilha.
Vestida uma camisa
preciosa
Trazia de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino
deixa ver-se,
Que tanto bem não é para esconder-se.
22 Anfitrite
Anfitrite, formosa como as
flores,
Neste caso não quis que falecesse;
O Delfim traz
consigo, que aos amores
Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.
Com
os olhos, que de tudo são senhores,
Qualquer parecerá
que o Sol vencesse:
Ambas vêm pela mão, igual
partido,
Pois ambas são esposas dum marido.
23 Ino. Panopéia.
Aquela que das fúrias
de Atamante
Fugindo, veio a ter divino estado,
Consigo traz o
filho, belo Infante,
No número dos Deuses relatado.
Pela
praia brincando vem diante
Com as lindas conchinhas, que o
salgado
Mar sempre cria, e às vezes pela areia
No colo o
to a a bela Panopeia.
24 Glauco
E o Deus que foi num tempo corpo
humano,
E por virtude da erva poderosa
Foi convertido em peixe,
e deste dano
Lhe resultou deidade gloriosa,
Inda vinha chorando
o feio engano
Que Circe tinha usado com a formosa
Cila, que ele
ama, desta sendo amado,
Que a mais obriga amor mal
empregado.
25
Já finalmente todos
assentados
Na grande sala, nobre e divinal;
As Deusas em
riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de
cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que com o Tebano
tinha assento igual.
De fumos enche a casa a rica massa
Que no
mar nasce, e Arábia em cheiro passa.
26 Fala de Baco contra os portugueses
Estando
sossegado já o tumulto
Dos Deuses, e de seus
recebimentos,
Começa a descobrir do peito oculto
A causa
o Tioneu de seus tormentos:
Um pouco carregando-se no vulto,
Dando
mostra de grandes sentimentos,
Só por dar aos de Luso
triste morte
Com o ferro alheio, fala desta sorte:
27
"Príncipe,
que de juro senhoreias
Dum Pólo ao outro Pólo o mar
irado,
Tu, que as gentes da terra toda enfreias,
Que não
passem o termo limitado;
E tu, padre Oceano, que rodeias
O
inundo universal, e o tens cercado,
E com justo decreto assim
permites
Que dentro vivam só de seus limites;
28
"E
vós, Deuses do mar, que não sofreis
Injúria
alguma em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não
vingueis
De quem quer que por ele corra e ande:
Que descuido
foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os
peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos fracos e
atrevidos?
29
"Vistes que com
grandíssima ousadia
Foram já cometer o Céu
supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com
vela e reino;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e
insolências tais, que temo
Que do mar e do Céu em
poucos anos
Venham Deuses a ser, e nós humanos.
30
"Vedes
agora a fraca geração
Que dum vassalo meu o nome
toma,
Com soberbo e altivo coração,
A vós,
e a mi, e o mundo todo doma;
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais
do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino
devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.
31
"Eu
vi que contra os Mínias, que primeiro
No vosso reino este
caminho abriram,
Bóreas injuriado, e o companheiro
Aquilo,
e os outros todos resistiram.
Pois se do ajuntamento
aventureiro
Os ventos esta injúria assim sentiram,
Vós,
a quem mais compete esta vingança,
Que esperais? Porque a
pondes em tardança?
32
"E não
consinto, Deuses, que cuideis
Que por amor de vós do céu
desci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis,
Mas
da que se me faz também a mi;
Que aquelas grandes honras,
que sabeis
Que no mundo ganhei, quando venc As terras Indianas do
Oriente,
Todas vejo abatidas desta gente.
33
"Que
o grã Senhor e Fados que destinam,
Como lhe bem parece, o
baixo mundo,
Famas mores que nunca determinam
De dar a estes
barões no mar profundo.
Aqui vereis, ó Deuses, como
ensinam
O mal também a Deuses: que, a segundo
Se vê,
ninguém já tem menos valia,
Que quem com mais razão
valer devia.
34
"E por isso do Olimpo já
fugi,
Buscando algum remédio a meus pesares,
Por ver o
preço que no Céu perdi,
Se por dita acharei nos
vossos mares."
Mais quis dizer, e não passou
daqui,
Porque as lágrimas já correndo a pares
Lhe
saltaram dos olhos, com que logo
Se acendem as Deidades d'água
em fogo.
35
A ira com que súbito
alterado
O coração dos Deuses foi num ponto,
Não
sofreu mais conselho bem cuidado,
Nem dilação, nem
outro algum desconto.
Ao grande Eolo mandam já recado
Da
parte de Netuno, que sem conto
Solte as fúrias dos ventos
repugnantes,
Que não haja no mar mais navegantes.
36 Proteu
Bem quisera primeiro ali Proteu
Dizer
neste negócio o que sentia,
E segundo o que a todos
pareceu,
Era alguma profunda profecia.
Porém tanto o
tumulto se moveu
Súbito na divina companhia,
Que Tethys
indignada lhe bradou:
"Netuno sabe bem o que mandou".
37 Eolo solta os ventos
Já lá o
soberbo Hipótades soltava
Do cárcere fechado os
furiosos
Ventos, que com palavras animava
Contra os varões
audazes e animosos.
Súbito o céu sereno se
obumbrava,
Que os ventos, mais que nunca impetuosos,
Começam
novas forças a ir tomando,
Torres, montes e casas
derribando.
38 O que faziam entretanto a bordo os portugueses
Enquanto
este conselho se fazia
No fundo aquoso, a leda lassa frota
Com
vento sossegado prosseguia,
Pelo tranqüilo mar, a longa
rota.
Era no tempo quando a luz do dia
Do Eôo Hemisfério
está remota;
Os do quarto da prima se deitavam,
Para o
segundo os outros despertavam.
39 À noite, a bordo
Vencidos vêm do
sono, e mal despertos;
Bocejando a miúdo se
encostavam
Pelas antenas, todos mal cobertos
Contra os agudos
ares, que assopravam;
Os olhos contra seu querer abertos,
Alas
estregando, os membros estiravam;
Remédios contra o sono
buscar querem,
Histórias contam, casos mil
referem.
40
"Com que melhor podemos, um
dizia,
Este tempo passar, que é tão pesado,
Senão
com algum conto de alegria,
Com que nos deixe o sono
carregado?"
Responde Leonardo, que trazia
Pensamentos de
firme namorado:
"Que contos poderemos ter melhores,
Para
passar o tempo, que de amores?"
41
"Não
é, disse Veloso, coisa justa
Tratar branduras em tanta
aspereza;
Que o trabalho do mar, que tanto custa,
Não
sofre amores, nem delicadeza;
Antes de guerra férvida e
robusta
A nossa história seja, pois dureza
Nossa vida há
de ser, segundo entendo,
Que o trabalho por vir me está
dizendo."
42 Narração de
Veloso
Consentem nisto todos, e encomendam
A Veloso
que conte isto que aprova.
"Contarei, disse, sem que me
repreendam
De contar cousa fabulosa ou nova;
E porque os que me
ouvirem daqui aprendam
A fazer feitos grandes de alta prova,
Dos
nascidos direi na nossa terra,
E estes sejam os doze de
Inglaterra.
43 No tempo de Dom João
"No tempo
que do Reino a rédea leve
João, filho de Pedro,
moderava,
Depois que sossegado e livre o teve
Do vizinho poder,
que o molestava,
Lá na grande Inglaterra, que da
neve
Boreal sempre abunda, semeava
A fera Erínis dura e
má cizânia,
Que lustre fosse a nossa Lusitânia.
44
Entre damas e cortesãos da corte inglesa
"Entre
as damas gentis da corte Inglesa
E nobres cortesãos, acaso
um dia
Se levantou discórdia em ira acesa,
Ou foi
opinião, ou foi porfia.
Os cortesãos, a quem tão
pouco pesa
Soltar palavras graves de ousadia,
Dizem que
provarão, que honras e famas
45 Desafio
"E que se houver alguém,
com lança e espada,
Que queira sustentar a parte sua,
Que
eles, em campo raso ou estacada,
Lhe darão feia infâmia,
ou morte crua.
A feminil fraqueza Pouco usada,
Ou nunca, a
opróbrios tais, vendo-se nua
De forças naturais
convenientes,
Socorro pede a amigos e parentes.
46
Queixam-se as damas ao duque de Lancaster
"Mas como
fossem grandes e possantes
No reino os inimigos, não se
atrevem
Nem parentes, nem férvidos amantes,
A sustentar
as damas, como devem.
Com lágrimas formosas e bastantes
A
fazer que em socorro os Deuses levem
De todo o Céu, por
rostos de alabastro,
Se vão todas ao duque de Alencastro.
47 O duque de Lancaster
"Era este Inglês
potente, e militara
Com os Portugueses já contra
Castela,
Onde as forças magnânimas provara
Dos
companheiros, e benigna estrela:
Não menos nesta terra
experimentara
Namorados afeitos, quando nela
A filha viu, que
tinto o peito doma
Do forte Rei, que por mulher a toma.
48 Fala o duque de Lancaster
"Este, que
socorrer-lhe não queria,
Por não causar discórdias
intestinas,
Lhe diz: "Quando o direito pretendia
Do
reino lá das terras Iberinas,
Nos Lusitanos vi tanta
ousadia,
Tanto primor, e partes tão divinas,
Que eles
sós poderiam, se não erro,
Sustentar vossa parte a
fogo e ferro.
49
"E se, agravadas damas,
sois servidas,
Por vós lhe mandarei embaixadores,
Que,
por cartas discretas e polidas,
De vosso agravo os façam
sabedores.
Também por vossa parto encarecidas
Com
palavras de afagos e de amores
Lhe sejam vossas lágrimas,
que eu creio
Que ali tereis socorro e forte esteio."
50
"Destarte as aconselha o Duque
experto,
E logo lhe nomeia doze fortes;
E por que cada dama um
tenha certo,
Lhe manda que sobre eles lancem sortes,
Que elas
só doze são; e descoberto
Qual a qual tem caído
das consertes,
Cada uma escreve ao seu por vários modos,
E
todas a seu Rei, e o Duque a todos.
51 Mensagem do duque a Dom João
"Já
chega a Portugal o mensageiro;
Toda a corte alvoroça a
novidade;
Quisera o Rei sublime ser primeiro,
Mas não
lhe sofre a Régia Majestade.
Qualquer dos cortesãos
aventureiro
Deseja ser, com férvida vontade,
F, só
fica por bem-aventurado
Quem já vem pelo Duque nomeado.
52 Preparam-se os doze para partir
"Lá
na leal Cidade, donde teve
Origem (como é fama) o nome
eterno
De Portugal, armar madeiro leve
Manda o que tem o leme
do governo.
Apercebem-se os doze, em tempo breve,
De armas, e
roupas de uso mais moderno,
De elmos, cimeiras, letras, e
primores,
Cavalos, e concertos de mil cores.
53 Magriço
"Já do seu Rei
tomado têm licença
Para partir do Douro
celebrado
Aqueles, que escolhidos por sentença
Foram do
Duque Inglês experimentado.
Não há na
companhia diferença
De cavaleiro destro ou esforçado;
Mas
um só, que Magriço se dizia,
Destarte fala à
forte companhia:
54 Fala de Magriço aos companheiros
"Fortíssimos consócios, eu desejo
Há
muito já de andar terras estranhas,
Por ver mais águas
que as do Douro o Tejo,
Várias gentes, e leis, e várias
manhas.
Agora, que aparelho certo vejo,
(Pois que do mundo as
coisas são tamanhas)
Quero, se me deixais, ir só por
terra,
Porque eu serei convosco em Inglaterra.
55
"E quando caso for que eu impedido
Por quem das cousas é
última linha,
Não for convosco ao prazo
instituído,
Pouca falta vos faz a falta minha:
Todos por
mim fareis o que é devido;
Mas, se a verdade o espírito
me adivinha,
Rios, montes, fortuna, ou sua inveja,
Não
farão que eu convosco lá não seja."
56
"Assim
diz, e abraçados os amigos,
E tomada licença, enfim
se parte:
Passa Lião, Castela, vendo antigos
Lugares,
que ganhara o pátrio Marte;
Navarra, com os altíssimos
perigos
Do Perineu, que Espanha e Gália parte;
Vistas
enfim de França as coisas grandes,
No grande empório
foi parar de Frandes.
57
"Ali chegado,
ou fosse caso ou manha,
Sem passar se deteve muitos dias:
Mas
dos onze a ilustríssima companha
Cortam do mar do Norte as
ondas frias.
Chegados de Inglaterra à costa estranha,
Para
Londres já fazem todos vias.
Do Duque são com festa
agasalhados,
E das damas servidos e amimados.
58
"Chega-se
o prazo e dia assinalado
De entrar em campo já com os doze
Ingleses,
Que pelo Rei já tinham segurado:
Armam-se de
elmos, grevas e de arneses:
Já as damas têm por si,
fulgente e armado,
O Mavorte feroz dos Portugueses;
Vestem-se
elas de cores e de sedas,
De ouro e de jóias mil, ricas e
ledas.
59
"Mas aquela, a quem fora em
sorte dado
Magriço, que não vinha, com tristeza
Se
veste, por não ter quem nomeado
Seja seu cavaleiro nesta
empresa;
Bem que os onze apregoam, que acabado
Será o
negócio assim na corte Inglesa,
Que as damas vencedoras se
conheçam,
Posto que dois e três dos seus faleçam.
60 O torneio
"Já num sublime e
público teatro
Se assenta o Rei Inglês com toda a
corte:
Estavam três e três, e quatro e quatro,
Bem
como a cada qual coubera em sorte.
Não são vistos do
Sol, do Tejo ao Batro,
De força, esforço e de ânimo
mais forte
Outros doze sair, como os Ingleses,
No campo, contra
os onze Portugueses.
61
"Mastigam os
cavalos, escumando,
Os áureos freios com feroz
semblante;
Estava o Sol nas armas rutilando
Como em cristal ou
rígido diamante;
Mas enxerga-se num e noutro bando
Partido
desigual e dissonante
Dos onze contra os doze: quando a
gente
Começa a alvoroçar-se geralmente.
62 Entrada de Magriço
"Viram todos o
rosto aonde havia
A causa principal do reboliço:
Eis
entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico
serviço.
Ao Rei e às damas fala, e logo se ia
Para
os onze, que este era o grã Magriço;
Abraça
os companheiros como amigos,
A quem não falta certo nos
perigos.
63 Alegria da dama, a quem coubera
em sorte
o Magriço
"A dama, como ouviu que este era
aquele
Que vinha a defender seu nome e fama,
Se alegra, e veste
ali do animal de Hele,
Que a gente bruta mais que virtude ama.
Já
dão sinal, e o som da tuba impele
Os belicosos ânimos,
que inflama:
Picam de esporas, largam rédeas logo,
Abaixam
lanças, fere a terra fogo.
64 O combate
"Dos cavalos o estrépito
parece
Que faz que o chão debaixo todo treme;
O coração
no peito, que estremece
De quem os olha, se alvoroça e
teme:
Qual do cavalo voa, que não desce;
Qual, com o
cavalo em terra dando, geme;
Qual vermelhas as armas faz de
brancas;
Qual com os penachos do elmo açouta as
ancas.
65
"Algum dali tomou perpétuo
sono
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo algum
cavalo vai sem dono
E noutra parte o dono sem cavalo.
Cai a
soberba Inglesa de seu trono,
Que dois ou três já
fora vão do vale;
Os que de espada vêm fazer batalha,
Mais acham já que arnês, escudo e malha.
66 Vitória dos portugueses
"Gastar
palavras em contar extremos
De golpes feros, cruas estocadas,
É
desses gastadores, que sabemos,
Maus do tempo, com fábulas
sonhadas.
Basta, por fim do caso, que entendemos
Que com
finezas altas e afamadas,
Com os nossos fica a palma da vitória,
E
as damas vencedoras, e com glória.
67 Banquetes e festas aos vencedores
"Recolhe
o Duque os doze vencedores
Nos seus paços, com festas e
alegria;
Cozinheiros ocupa e caçadores
Das damas a
formosa companhia,
Que querem dar aos seus libertadores
Banquetes
mil cada hora e cada dia,
Enquanto se detêm em
Inglaterra,
Até tornar à doce e cara terra.
68 Outros feitos do Magriço
"Mas
dizem que, contudo, o grã Magriço,
Desejoso de ver
as coisas grandes,
Lá se deixou ficar, onde um
serviço
Notável à condessa fez de Frandes;
E
como quem não era já noviço
Em todo trance,
onde tu, Marte, mandes,
Um Francês mata em campo, que o
destino
Lá teve de Torcato e de Corvino.
69 Fim da narração dos Doze de
Inglaterra
"Outro também dos doze em
Alemanha
Se lança, e teve um fero desafio
Com um Germano
enganoso, que com manha
Não devida o quis pôr no
extremo fio."
Contando assim Veloso, já a companha
Lhe
pede que não f aça tal desvio
Do caso de Magriço,
e vencimento,
Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.
70 A tempestade
Mas, neste passo, assim prontos
estando
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca;
acordam despertando
Os marinheiros duma e doutra banda;
E
porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas
tomar manda:
"Alerta, disse, estai, que o vento
cresce
Daquela nuvem negra que aparece."
71
Não
eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita
procela:
"Amaina, disse o mestre a grandes brados,
Amaina,
disse, amaina a grande vela!"
Não esperam os ventos
indinados
Que amainassem; mas juntos dando nela,
Em pedaços
a fazem, com um ruído
Que o mundo pareceu ser destruído.
72 "Alija tudo ao mar!"
O céu
fere com gritos nisto a gente,
Com súbito temor e
desacordo,
Que, no romper da vela, a nau pendente
Toma grã
suma d'água pelo bordo:
"Alija, disse o mestre
rijamente,
Alija tudo ao mar; não falte acordo.
Vão
outros dar à bomba, não cessando;
A bomba, que nos
imos alagando!"
73
Correm logo os
soldados animosos
A dar à bomba; e, tanto que chegaram,
Os
balanços que os mares temerosos
Deram à nau, num
bordo os derribaram.
Três marinheiros, duros e forçosos,
A
menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham duma e doutra
parte,
Sem aproveitar dos homens força e arte.
74 A força dos ventos
Os ventos eram tais,
que não puderam
Mostrar mais força do ímpeto
cruel,
Se para derribar então vieram
A fortíssima
torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que cresceram,
A
pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move
espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.
75
A nau grande, em que vai Paulo da
Gama,
Quebrado leva o masto pelo meio.
Quase toda alagada: a
gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio.
Não menos
gritos vãos ao ar derrama
Toda a nau de Coelho, com
receio,
Conquanto teve o mestre tanto tento,
Que primeiro
amainou, que desse o vento.
76 A fúria das ondas
Agora sobre as nuvens
os subiam
As ondas de Netuno furibundo;
Agora a ver parece que
desciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro,
Bóreas, Aquilo queriam
Arruinar a máquina do
mundo:
A noite negra e feia se alumia
Com os raios, em que o
Pólo todo ardia.
77
As Alcióneas
aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se
do seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe
causaram.
Os delfins namorados entretanto
Lá nas covas
marítimas entraram,
Fugindo à tempestade e ventos
duros,
Que nem no fundo os deixa estar segui-os.
78 Coriscos e relâmpagos
Nunca tão
vivos raios fabricou
Contra a fera soberba dos Gigantes
O grã
ferreiro sórdido, que obrou
Do enteado as armas
radiantes;
Nem tanto o grã Tonante arremessou
Relâmpagos
ao mundo fulminantes,
No grã dilúvio, donde sós
viveram
Os dois que em gente as pedras converteram.
79
Quantos
montes, então, que derribaram
As ondas que batiam
denodadas!
Quantas árvores velhas arrancaram
Do vento
bravo as fúrias indinadas!
As forçosas raízes
não cuidaram
Que nunca para o céu fossem
viradas,
Nem as fundas areias que pudessem
Tanto os mares que
em cima as revolvessem.
80 Prece do Gama
Vendo Vasco da Gama que tão
perto
Do fim de seu desejo se perdia;
Vendo ora o mar até
o inferno aberto,
Ora com nova fúria ao céu
subia,
Confuso de temor, da vida incerto,
Onde nenhum remédio
lhe valia,
Chama aquele remédio santo é forte,
Que
o impossível pode, desta sorte:
81
"Divina
Guarda, angélica, celeste,
Que os céus, o mar e
terra senhoreias;
Tu, que a todo Israel refúgio deste
Por
metade das águas Eritreias;
Tu, que livraste Paulo e o
defendeste
Das Sirtes arenosas e ondas feias,
E guardaste com
os filhos o segundo
Povoador do alagado e vácuo
mundo;
82
"Se tenho novos modos
perigosos
Doutra Cila e Caríbdis já passados,
Outras
Sirtes e baixos arenosos,
Outros Acroceráunios
infamados,
No fim de tantos casos trabalhosos,
Por que somos de
ti desamparados,
Se este nosso trabalho não te ofende,
Mas
antes teu serviço só pretende?
83
"Ó
ditosos aqueles que puderam
Entre as agudas lanças
Africanas
Morrer, enquanto fortes sostiveram
A santa Fé
nas terras Mauritanas!
De quem feitos ilustres se souberam,
De
quem ficam memórias soberanas,
De quem se ganha a vida com
perdê-la,
Doce fazendo a morte as honras dela!"
84
Assim
dizendo, os ventos que lutavam
Como touros indômitos
bramando,
Mais e mais a tormenta acrescentavam
Pela miúda
enxárcia assoviando.
Relâmpados medonhos não
cessavam,
Feros trovões, que vêm representando
Cair
o céu dos eixos sobre a terra,
Consigo os elementos terem
guerra.
85 Vênus abranda o furor dos ventos
Mas já
a amorosa estrela cintilava
Diante do Sol claro, no Horizonte,
Mensageira do dia, e visitava
A terra e o largo mar, com leda
fronte.
A densa que nos céus a governava,
De quem foge o
ensífero Orionte,
Tanto que o mar e a cara armada
vira,
Tocada junto foi de medo e de ira.
86
"Estas
obras de Baco são, por certo,
Disse; mas não será
que avante leve
Tão danada tenção, que
descoberto
Me será sempre o mil a que se atreve."
Isto
dizendo, desce ao mar aberto,
No caminho gastando espaço
breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças
pôr de rosas.
87 Os ventos e as Ninfas
Grinaldas manda pôr
de várias cores
Sobre cabelo; louros à porfia.
Quem
não dirá que nascem roxas flores
Sobre ouro natural,
que Amor enfia?
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a
nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que
mais formosas vinham que as estrelas.
88
Assim
foi; porque, tanto que chegaram
A vista delas, logo lhe falecem
As
forças com que dantes pelejaram,
E já como rendidos
lhe obedecem.
Os pés e mãos parece que lhe ataram
Os
cabelos que os raios escurecem.
A Bóreas, que do peito mais
queria,
Assim disse a belíssima Oritia:
89
"Não
creias, fero Bóreas, que te creio
Que me tiveste nunca amor
constante,
Que brandura é de amor mais certo arreio,
E
não convém furor a firme amante.
Se já não
pões a tanta insânia freio,
Não esperes de mi,
daqui em diante,
Que possa mais amar-te, mas temer-te;
Que amor
contigo em medo se converte."
90
Assim
mesmo a formosa Galateia
Dizia ao fero Noto, que bem sabe
Que
dias há que em vê-la se recreia,
E bem crê que
com ele tudo acabe.
Não sabe o bravo tanto bem se o creia,
Que o coração no peito lhe não cabe,
De
contente de ver que a dama o manda,
Pouco cuida que faz, se logo
abranda.
91
Desta maneira as outras
amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo à linda
Vênus se entregavam,
Amansadas as iras e os furores.
Ela
lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus
amores,
Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe
serem leais esta viagem.
92 Terra de Calecu!
Já a manhã
clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando
da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela
proa.
Já fora de tormenta, e dos primeiros
Mares, o
temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto
Melindano:
"Terra é de Calecu, se não me
engano.
93 Dá o Gama graças a Deus
"Esta
é por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia,
que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso
trabalho longo aqui fenece."
Sofrer aqui não pode o
Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece:
Os geolhos no
chão, as mãos ao céu,
A mercê grande a
Deus agradeceu.
94
As graças a Deus
dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe
mostrava,
Que com tanto temor buscando vinha,
Por quem tanto
trabalho experimentava;
Mas via-se livrado tão asinha
Da
morte, que no mar lhe aparelhava
O vento duro, fervido e
medonho,
Como quem despertou de horrendo sonho.
95 Como se alcança a verdadeira glória
Por
meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e
temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As
honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos
antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos
leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia
zebelinos;
96
Não com os manjares
novos e esquisitos,
Não com os passeios moles e
ociosos,
Não com os vários deleites e infinitos,
Que
afeminam os peitos generosos,
Não com os nunca vencidos
apetitos
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não
sofre a nenhum que o passo mude
Para alguma obra heróica de
virtude;
97
Mas com buscar com o seu forçoso
braço
As honras, que ele chame próprias
suas;
Vigiando, e vestindo o forjado aço,
Sofrendo
tempestades e ondas cruas;
Vencendo os torpes frios no regaço
Do
Sul e regiões de abrigo nuas;
Engolindo o corrupto
mantimento,
Temperado com um árduo sofrimento;
98
E com forçar o rosto, que se enfia,
A
parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente, que
assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte,
o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e
dinheiro,
Das honras e dinheiro, que a ventura
Forjou, e não
virtude justa e dura.
99
Destarte se
esclarece o entendimento,
Que experiências fazem
repousado,
E fica vendo, corno de alto assento,
O baixo trato
humano embaraçado.
Este, onde tiver força o
regimento
Direito, e não de afeitos ocupado,
Subirá
(como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não
rogando.
CANTO VII
1 Chegada da frota à Índia
Já
se viam chegados junto à terra,
Que desejada já de
tantos fora,
Que entre as correntes Indicas se encerra,
E o
Ganges, que no céu terreno mora.
Ora, sus, gente forte, que
na guerra
Quereis levar a palma vencedora,
Já sois
chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante.
2 Elogio a Portugal
A vós, ó
geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte
sois no inundo;
Não digo ainda no mundo, mas no
amigo
Curral de quem governa o céu rotundo;
Vós,
a quem não somente algum perigo
Estorva conquistar o povo
imundo,
Mas nem cobiça, ou pouca obediência
Da
Madre, que nos céus está em essência;
3
Vós,
Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não
pesais;
Vós, que à custa de vossas várias
mortes
A lei da vida eterna dilatais:
Assim do céu
deitadas são as sortes,
Que vós, por muito poucos
que sejais,
Muito façais na santa Cristandade:
Que
tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
4 Alemanha
Vede-los Alemães, soberbo
gado,
Que por tão largos campos se apascenta,
Do
sucessor de Pedro, rebelado,
Novo pastor, e nova seita
inventa:
Vede-lo em feias guerras ocupado,
Que ainda com o cego
error se não contenta,
Não contra o soberbíssimo
Otomano,
Mas por sair do jugo soberano.
5 Inglaterra
Vede-lo duro Inglês, que se
nomeia
Rei da velha e santíssima cidade,
Que o torpe
Ismaelita senhoreia,
(Quem viu honra tão longe da
verdade?)
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz
de Cristandade:
Para os de Cristo tem a espada nua,
Não
por tomar a terra que era sua.
6 França
Guarda-lhe por entanto um falso
Re A cidade Hierosólima terrestre,
Enquanto ele não
guarda a santa le Da cidade Hierosólima celeste.
Pois de
ti, Galo indigno, que direi?
Que o nome Cristianíssimo
quiseste,
Não para defendê-lo, nem guardá-lo,
Mas
para ser contra ele, e derrubá-lo!
7
Achas que tens
direito em senhorios
De Cristãos, sendo o teu tão
largo e tanto,
E não contra o Cinífio e Nilo,
rios
Inimigos do antigo nome santo?
Ali se hão de provar
da espada os fios
Em quem quer reprovar da Igreja o canto.
De
Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste, e as causas
não da justa guerra?
8 Itália
Pois que direi daqueles que em
delícias,
Que o vil ócio no mundo traz
consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos
de seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que
o povo forte tem de si inimigo:
Contigo, Itália, falo, já
submersa
Em Vícios mil, e de ti mesma adversa.
9 Apelo às nações cristãs
Ó
míseros Cristãos, pela ventura,
Sois os dentes de
Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão a morte
dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a
divina sepultura
Possuída de cães, que sempre
unidos
Vos vêm tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se
famosos pela guerra?
10
Vedes que têm por uso e por decreto,
Do
qual são tão inteiros observantes,
Ajuntarem o
exército inquieto
Contra os povos que são de Cristo
amantes;
Entre vós nunca deixa a fera Aleto
De semear
cizânias repugnantes:
Olhai se estais seguros de
perigos,
Que eles e vós sois vossos inimigos.
11
Se
cobiça de grandes senhorios
Vos faz ir conquistar terras
alheias,
Não vedes que Pactolo e Hermo, rios,
Ambos
volvem auríferas areias?
Em Lídia, Assíria,
lavram de ouro os fios;
África esconde em si luzentes
veias;
Mova-vos já sequer riqueza tanta,
Pois mover-vos
não pode a Casa Santa.
12
Aquelas
invenções feras e novas
De instrumentos mortais da
artilharia,
Já devem de fazer as duras provas
Nos muros
de Bizâncio e de Turquia.
Fazei que torne lá às
silvestres covas
Dos Cáspios montes, e da Cítia
fria
A Turca geração, que multiplica
.Na polícia
da vossa Europa rica.
13
Gregos, Traces,
Arménios, Georgianos,
Bradando-vos estão que o povo
bruto
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do
Alcorão (duro tributo!)
Em castigar os feitos inumanos
Vos
gloriai de peito forte e astuto,
E não queirais louvores
arrogantes
De serdes contra os vossos muito possantes.
14
Mas
entanto que cegos o sedentos
Andais de vosso sangue, ó
gente insana!
Não faltarão Cristãos
atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana:
De África tem
marítimos assentos,
É na Ásia mais que todas
soberana,
Na quarta parte nova os campos ara,
E se mais mundo
houvera, lá chegara.
15 Entra a frota em Calecu
E vejamos entanto que
acontece
Aqueles tão famosos navegantes,
Depois que a
branda Vênus enfraquece
O furor vão dos ventos
repugnantes:
Depois que a larga terra lhe aparece,
Fim de suas
porfias tão constantes,
Onde vêm semear de Cristo a,
lei,
E dar novo costume e novo Rei.
16
Tanto
que à nova terra se chegaram,
Leves embarcações
de pescadores
Acharam, que o caminho lhe mostraram
De Calecu,
onde eram moradores.
Para lá logo as proas se
inclinaram,
Porque esta era a cidade das melhores
Do Malabar
melhor, onde vivia
O Rei que a terra toda possuía.
17 Descrição da Índia
Além
do Indo jaz, e aquém do Gange,
Um terreno muito grande e
assaz famoso,
Que pela parte Austral o mar abrange,
E para o
Norte o Emódio cavernoso.
Jugo de Reis diversos o
constrange
A várias leis: alguns o vicioso
Mahoma,
alguns os ídolos adoram,
Alguns os animais, que entre eles
morri.
18 O Indo e o Ganges
Lá bem no grande
monte, que cortando
Tão larga terra, toda Ásia
discorre,
Que nomes tão diversos vai tomando,
Segundo as
regiões por onde corre,
As fontes saem, donde vêm
manando
Os rios, cuja grã corrente morre
No mar Índico,
e cercam todo o peso
Do terreno, fazendo-o Quersoneso.
19 O Decã
Entro um e outro rio, em grande
espaço,
Sai da larga terra uma loira ponta
Quase
piramidal, que no regaço
Do mar com Ceilão ínsula
confronta;
E junto donde nasce o largo braço
Gangético,
o rumor antigo conta
Que os vizinhos, da terra moradores,
Do
cheiro se mantêm das finas flores.
20 Delis. Patanes. Decanis. Oriás.
Mas
agora de nomes e de usança
Novos e vários são
os habitantes:
Os Delis, os Patanes, que em possança
De
terra e gente, são mais abundantes;
Decanis, Oriás,
que a esperança
Têm de sua salvação
nas ressonantes
Águas do Gange, e a terra de Bengala
Fértil de sorte que outra não lhe iguala.
21 Cambaia. Narsinga.
O Reino de Cambaia
belicoso
(Dizem que foi de Poro, Rei potente)
O Reino de
Narsinga, poderoso
Mais de ouro e pedras que de forte gente.
Aqui
se enxerga lá do mar undoso
Um monte alto, que corre
longamente,
Servindo ao Malabar de forte muro,
Com que do
Canará vive seguro.
22 Calecu
Da terra os naturais lhe chamam
Gate,
Do pé do qual pequena quantidade
Se estende uma
fralda estreita, que combate
Do mar a natural ferocidade.
Aqui
de outras cidades, sem debate,
Calecu tem a ilustre dignidade
De
cabeça de Império rica e bela:
Samorim se intitula o
senhor dela.
23 Comunica o Gama ao rei de Calecu sua chegada
Chegada
a frota ao rico senhorio,
Um Português mandado logo parte
A
fazer sabedor o Rei gentio
Da vinda sua a tão remota
parte.
Entrando o mensageiro pelo rio,
Que ali nas ondas entra,
a não vista arte,
A cor, o gesto estranho, o trajo novo
Fez
concorrer a vê-lo todo o povo.
24 Monçaide
Entre a gente que a vê-lo
concorria,
Se chega um Mahometa, que nascido
Fora na região
da Berberia,
Lá onde fora Anteu obedecido:
Ou pela
vizinhança já teria
O Reino Lusitano conhecido,
Ou
foi já assinalado de seu ferro:
Fortuna o trouxe a tão
loiro desterro.
25
Em vendo o mensageiro, com
jocundo
Rosto, como quem sabe a língua Hispana,
Lhe
disse: "Quem te trouxe a estoutro mundo,
Tão longe da
tua pátria Lusitana?"
"Abrindo, lhe
responde, o mar profundo,
Por onde nunca veio gente humana,
Vimos
buscar do Indo a grão corrente,
Por onde a Lei divina se
acrescente."
26
Espantado ficou da grã
viagem
O Mouro, que Monçaide se chamava,
Ouvindo as
opressões que na passagem
Do mar, o Lusitano lhe
contava:
Mas vendo enfim que a f orça da mensagem
Só
para o Rei da terra relevava,
Lhe diz que estava f ora da
cidade,
Mas de caminho pouca quantidade.
27 Oferece Monçaide hospedagem
ao mensageiro do
Gama
E que, entanto que a nova lhe chegasse
De sua
estranha vinda, se queria,
Na sua pobre casa repousasse,
E do
manjar da terra comeria,
E depois que se um pouco recreasse,
Com
ele para a armada tornaria,
Que alegria não pode ser
tamanha,
Que achar gente vizinha em terra estranha.
28 Visita de Monçaide ao Gama
O Português
aceita de vontade
O que o ledo Monçaide lhe oferece;
Como
se longa fora já a amizade,
Com ele come, e bebe, e lhe
obedece.
Ambos se tornam logo da cidade
Para a frota, que o
Mouro bem conhece;
Sobem à capitania; e toda a
gente
Monçaide recebeu benignamente.
29 Informações
O Capitão o
abraça em cabo ledo,
Ouvindo clara a língua de
Castela;
Junto de si o assenta, e pronto e quedo,
Pela terra
pergunta, e cousas dela.
Qual se ajuntava em Ródope o
arvoredo,
Só por ouvir o amante da donzela
Eurídice,
tocando a lira de ouro,
Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro.
30 Fala de Monçaide
Ele começa: "Ó
gente, que a natura
Vizinha fez de meu paterno ninho,
Que
destino tão grande ou que ventura
Vos trouxe a cometerdes
tal caminho?
Não é sem causa, não, oculta e
escura,
Vir do longínquo Tejo e ignoto Minho,
Por mares
nunca doutro lenho arados,
A Reinos tão remotos e
apartados.
31 Descrição da Índia
"Deus
por certo vos traz, porque pretende
Algum serviço seu por
vós obrado;
Por isso só vos guia, e vos defende
Dos
inimigos, do mar, do vento irado.
Sabei que estais na Índia,
onde se estende
Diverso povo, rico e prosperado
De ouro luzente
e fina pedraria,
Cheiro suave, ardente especiaria.
32 Malabar. Saramá Perimal.
"Esta
província, cujo porto agora
Tomado tendes, Malabar se
chama:
Do culto antigo os ídolos adora,
Que cá
por estas partes se derrama:
De diversos Reis é, mas dum
só
Noutro tempo, segundo a antiga fama;
Saramá
Perimal foi derradeiro
Rei, que este Reino teve unido e inteiro.
33 Conversão do Perimal ao Maometismo
"Porém,
como a esta terra então viessem
De lá do seio
Arábico outras gentes,
Que o culto Mahomético
trouxessem,
No qual me instituíram meus parentes,
Sucedeu
que pregando convertessem
O Perimal: de sábios e
eloqüentes,
Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto,
Que
pressupôs de nela morrer santo.
34
"Naus
arma, e nelas mete curioso
Mercadoria, que ofereça
rica,
Para ir nelas a ser religioso,
Onde o profeta jaz, que a
Lei publica;
Antes que parta, o Reino poderoso
Com os seus
reparte, porque não lhe fica
Herdeiro próprio, faz
os mais aceitos
Ricos de pobres, livres de sujeitos.
35 Perimal reparte o Malabar por seus parentes
"A
um Cochim, e a outro Cananor,
A qual Chalé, a qual a ilha
da Pimenta,
A qual Coulão, a qual dá Cranganor,
E
os mais, a quem o mais serve e contenta,
Um só moço,
a quem tinha muito amor,
Depois que tudo deu, se lhe
apresenta:
Para este Calecu somente fica,
Cidade já por
trato nobre e rica.
36
"Esta lhe dá
com o título excelente
De Imperador, que sobre os outros
mande.
Isto feito, se parte diligente
Para onde em santa vida
acabe, e ande.
E daqui fica o nome de potente
Samori, mais que
todos digno e grande,
Ao moço e descendentes; donde
vem
Este, que agora o Império manda e tem.
37 Costumes. Naires e Poléas.
"A Lei
da gente toda, rica e pobre,
De fábulas composta se
imagina:
Andam nus, e somente um pano cobre
As partes, que a
cobrir natura ensina.
Dois modos há de gente, porque a
nobre
Naires chamados são, e a menos digna
Poleás
tem por nome, a quem obriga
A Lei não misturar a casta
antiga.
38
"Porque os que usaram sempre
um mesmo ofício,
De outro não podem receber
consorte,
Nem os filhos terão outro exercício,
Senão
o de seus passados, até morte.
Para os Naires é
certo grande vício
Destes serem tocados; de tal sorte,
Que
quando algum se toca, por ventura,
Com cerimônias mil se
alimpa e apura.
39
"Desta sorte o
Judaico povo antigo
Não tocava na gente de Samária.
Mais
estranhezas ainda das que digo
Nesta terra vereis de usança
vária.
Os Naires sós são dados ao perigo
Das
armas; sós defendem da contrária
Banda o seu Rei,
trazendo sempre usada
Na esquerda a adarga e na direita a espada.
40 Brâmenes
"Brâmenes são
os seus religiosos,
Nome antigo e de grande proeminência:
Observam
os preceitos tão famosos
Dum que primeiro pôs nome à
ciência:
Não matam coisa viva, e, temerosos,
Das
carnes têm grandíssima abstinência;
Somente no
venéreo ajuntamento
Têm mais licença e menos
regimento.
41
"Gerais são as
mulheres, mas somente
Para os da geração de seus
maridos:
Ditosa condição, ditosa gente,
Que não
são de ciúmes ofendidos!
Estes e outros costumes
variamente
São pelos Malabares admitidos.
A terra é
grossa em trato, em tudo aquilo
Que as ondas podem dar da China ao
Nilo."
42 Desembarque do Gama
Assim contava o Mouro; mas
vagando
Andava a fama já pela cidade
Da vinda desta
gente estranha, quando
O Rei saber mandava da verdade.
Já
vinham pelas ruas caminhando,
Rodeados de todo sexo e idade,
Os
principais, que o Rei buscar mandara
O Capitão da armada,
que chegara.
43
Mas ele, que do Rei já
tem licença
Para desembarcar, acompanhado
Dos nobres
Portugueses, sem detença
Parte, de ricos panos
adornado.
Das cores a formosa diferença
A vista alegra
ao povo alvoroçado.
O remo compassado fere frio
Agora o
mar, depois o fresco rio.
44
Na praia um regedor do Reino estava,
Que na
sua língua Catual se chama,
Rodeado de Naires, que
esperava
Com desusada festa o nobre Gama.
Já na terra,
nos braços o levava,
E num portátil leito uma rica
cama
Lhe oferece, em que vá, costume usado,
Que nos
ombros dos homens é levado.
45
Desta
arte o Malabar, destarte o Luso
Caminham, lá para onde o
Rei o espera:
Os outros Portugueses vão ao uso
Que
infantaria segue, esquadra fera.
O povo que concorre vai
confuso
De ver a gente estranha, e bem quisera
Perguntar: mas
no tempo já passado
Na torre de Babel lhe foi vedado.
46 Templo indiano
O Gama e o Catual iam
falando
Nas coisas, que lhe o tempo oferecia;
Monçaide
entre eles vai interpretando
As palavras que de ambos entendia.
Assim pela cidade caminhando,
Onde uma rica fábrica se
erguia
De um sumptuoso templo, já chegavam,
Pelas
portas do qual juntos entravam.
47
Ali estão
das deidades as figuras
Esculpidas em pau e em pedra fria;
Vários
de gestos, vários de pinturas,
A segundo o Demônio
lhe fingia:
Vêem-se as abomináveis esculturas,
Qual
a Quimera em membros se varia:
Os Cristãos olhos, a ver
Deus usados
Em forma humana, estão maravilhados.
48 No templo indiano
Um na cabeça cornos
esculpidos,
Qual Júpiter Amon em Líbia estava;
Outro
num corpo rostos tinha unidos,
Bem como o antigo Jano se
pintava;
Outro com muitos braços divididos
A Briareu
parece que imitava;
Outro fronte canina tem de fora,
Qual
Anúbis Menfítico se adora.
49 Dirige-se o Gama para o palácio real
Aqui
feita do bárbaro gentio
A supersticiosa adoração,
Direitos
vão, sem outro algum desvio,
Para onde estava o Rei do povo
vão.
Engrossando-se vai da gente o fio,
Com os que vêm
ver o estranho Capitão;
Estão pelos telhados e
janelas
Velhos e moços, donas e donzelas.
50
Já
chegam perto, e não com passos lentos,
Dos jardins
odoríferos formosos,
Que em si escondem os régios
aposentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos.
Edificam-se
os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assim
vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.
51 No palácio do Samorim
Pelos portais da
cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em
figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota
antigüidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As
histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver
notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.
52 Baco
Estava um grande exército que
pisa
A terra Oriental, que o Idaspe lava;
Rege-o um capitão
de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava;
Por ele
edificada estiva Nisa
Nas ribeiras do rio, que manava,
Tão
próprio, que se ali estiver Semele,
Dirá, por certo,
que é seu filho aquele.
53 Semíramis
Mais avante bebendo seca o
rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita
a feminino senhorio
De uma tão bela como incontinente.
Ali
tem junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete
ardente,
Com quem teria o filho competência:
Amor
nefando, bruta incontinência!
54 Alexandre
Daqui mais apartadas tremulavam
As
bandeiras de Grécia gloriosas,
Terceira Monarquia, e
sojugavam
Até as águas Gangéticas
undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas
rodeado valerosas,
Que já, não de Filipo, mas sem
falta
De progênie de Júpiter se exalta.
55 Fala do Catual. Profecia
da vinda dos
portugueses à Índia
Os Portugueses vendo
estas memórias,
Dizia o Catual ao Capitão:
"Tempo
cedo virá que outras vitórias
Estas, que agora
olhais, abaterão;
Aqui se escreverão novas
histórias
Por gentes estrangeiras que virão;
Que
os nossos sábios magos o alcançaram
Quando o tempo
futuro especularam.
56
"E diz-lhe mais a
mágica ciência
Que, para se evitar força
tamanha,
Não valerá dos homens resistência,
Que
contra o Céu não val da gente manha;
Mas também
diz que a bélica excelência,
Nas armas e na paz, da
gente estranha
Será tal, que será no mundo ouvido
O
vencedor, por glória do vencido,"
57 O Samorim
Assim falando entravam já na
sala,
Onde aquele potente Imperador
Numa camilha jaz, que não
se iguala
De outra alguma no preço e no lavor.
No
recostado gesto se assinala
Um venerando e próspero
senhor;
Um pano de ouro cinge, e na cabeça
De preciosas
gemas se adereça.
58
Bem junto dele um
velho reverente,
Com os giolhos no chão, de quando em
quando
Lhe dava a verde folha da erva ardente,
Que a seu
costume estava ruminando.
Um Brâmene, pessoa
proeminente,
Para o Gama vem com passo brando,
Para que ao
grande Príncipe o apresente,
Que diante lhe acena que se
assente.
59 Fala do Gama ao Samorim
Sentado o Gama junto
ao rico leito,
Os seus mais afastados, pronto em vista
Estava o
Samori no trajo e jeito
Da gente, nunca de antes dele
vista.
Lançando a grave voz do sábio peito,
Que
grande autoridade logo aquista
Na opinião do Rei e do povo
todo,
O Capitão lhe fala deste modo:
60
"Um
grande Rei, de lá das partes Onde
O céu volúvel,
com perpétua roda,
Da terra a luz solar com a terra
esconde,
Tingindo a que deixou de escura noda,
Ouvindo do rumor
que lá responde
O eco, como em ti da Índia toda
O
principado está, e a majestade,
Vínculo quer contigo
de amizade.
61
"E por longos rodeios a
ti manda,
Por te fazer saber que tudo aquilo
Que sobre o mar,
que sobre as terras anda
De riquezas, de lá do Tejo ao
Nilo,
E desde a fria plaga de Gelanda
Até bem donde o
Sol não muda o estilo
Nos dias, sobre a gente de
Etiópia,
Tudo tem no seu Reino em grande cópia.
62 Proposta de aliança
"E se queres
com pactos e alianças
De paz e de amizade sacra e
nua
Comércio consentir das abastanças
Das
fazendas da terra sua e tua,
Por que cresçam as rendas e
abastanças,
Por quem a gente mais trabalha e sua,
De
vossos Reinos, será certamente
De ti proveito, o dele
glória ingente.
63
"E sendo
assim, que o nó desta amizade
Entre vós firmemente
permaneça,
Estará pronto a toda adversidade,
Que
por guerra a teu Reino se ofereça,
Com gente, armas e naus,
de qualidade
Que por irmão te tenha e te conheça;
E
da vontade em ti sobre isto posta
Me dês a mim certíssima
resposta."
64
Tal embaixada dava o
Capitão,
A quem o Rei gentio respondia
Que, em ver
embaixadores de nação
Tão remota, grã
glória recebia;
Mas neste caso a última tenção
Com
os de seu conselho tomaria,
Informando-se certo de quem era
O
Rei, e a gente, e terra que dissera..
65 Retira-se o Gama para os aposentos que
lhe
haviam sido destinadps pelo Samorim
E que entanto podia do
trabalho
Passado ir repousar, e em tempo breve
Daria a seu
despacho um justo talho,
Com que a seu Rei resposta alegre
leve.
Já nisto punha a noite o usado atalho
As humanas
canseiras, por que ceve
De doce sono os membros trabalhados,
Os
olhos ocupando ao ócio dados.
66 O Catual manda chamar Monçaide,
para
informá-lo acerca dos portugueses
Agasalhados foram
juntamente
O Gama e Portugueses no aposento
Do nobre Regedor da
Índica gente,
Com festas e geral contentamento.
O
Catual, no cargo diligente
De seu Rei, tinha já por
regimento
Saber da gente estranha donde vinha,
Que costumes,
que lei, que terra tinha.
67
Tanto que os
ígneos carros do formoso
Mancebo Délio viu, que a
luz renova,
Manda chamar Monçaide, desejoso
De poder-se
informar da gente nova.
Já lhe pergunta pronto e
curioso,
Se tem notícia inteira e certa prova
Dos
estranhos, quem são; que ouvido tinha
Que é gente de
sua pátria muito vizinha;
68 Informações de Monçaide
Que
particularmente ali lhe desse
Informação mui larga,
pois faria
Nisso serviço ao Rei, por que soubesse
O que
neste negócio se faria.
Monçaide torna:
"Posto que eu quisesse
Dizer-te disto mais, não
saberia;
Somente sei que é gente lá de Espanha,
Onde
o meu ninho e o Sol no mar se banha.
69
"Têm
a lei dum Profeta, que gerado
Foi sem fazer na carne detrimento
Da
mãe, tal que por bafo está aprovado
Do Deus, que tem
do mundo o regimento,
O que entre meus antigos é
vulgado
Deles, é que o valor sanguinolento
Das armas no
seu braço resplandece,
O que em nossos passados se
parece.
70
"Porque eles, com virtude
sobre-humana,
Os deitaram dos campos abundosos
Do rico Tejo e
fresco Goadiana,
Com feitos memoráveis e famosos:
E não
contentes ainda, e na Africana
Parte, cortando os mares
procelosos,
Nos não querem deixar viver
seguros,
Tomando-nos cidades e altos muros.
71
"Não
menos têm mostrado esforço e manha
Em quaisquer
outras guerras que aconteças,
Ou das gentes belígeras
de Espanha,
Ou lá dalguns que do Pírene
desçam.
Assim que nunca enfim com lança estranha
Se
tem, que por vencidos se conheçam,
Nem se sabe ainda, não,
te afirmo e asselo,
Para estes Anibais nenhum Marcelo.
72
"E
se esta informação não for inteira
Tanto
quanto convém, deles pretende
Informar-te, que é
gente verdadeira,
A quem mais falsidade enoja e ofende:
Vai
ver-lhe a f rota, as armas e a maneira
Do fundido metal, que tudo
rende,
E folgarás de veres a polícia
Portuguesa
na paz e na milícia."
73
Já
com desejos o Idolatra ardia
De ver isto, que o Mouro lhe
contava.
Manda esquipar batéis que ir ver queria
Os
lenhos em que o Gama navegava.
Ambos partem da praia, a quem
seguia
A Naira geração, que o mar coalhava.
A
capitania sobem forte e bela,
Onde Paulo os recebe a bordo
dela.
74
Purpúreos são os
toldos, e as bandeiras
Do rico fio são que o bicho
gera;
Nelas estão pintadas as guerreiras
Obras, que o
forte braço já fizera:
Batalhas tem campais,
aventureiras,
Desafios cruéis, pintura fera,
Que, tanto
que ao Gentio se apresenta,
A tento nela os olhos apascenta.
75 Visita o Catual a frota
Pelo que vê
pergunta; mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente,
E que
aquele deleite, que tanto ama
A seita Epicureia, experimente.
Dos
espumantes vasos se derrama
O licor que Noé mostrara à
gente:
Mas comer o Gentio não pretende,
Que a seita que
seguia lho defende.
76
A trombeta que, em
paz, no pensamento
Imagem faz de guerra, rompe os ares;
Com o
fogo o diabólico instrumento
Se faz ouvir no fundo lá
dos mares.
Tudo o Gentio nota; mas o intento
Mostrava sempre
ter nos singulares
Feitos dos homens, que em retrato breve
A
muda poesia ali descreve
77 Luso
Alça-se em pé, com ele o
Gama junto,
Coelho de outra parti, e o Mauritano;
Os olhos põe
no bélico transunto
De um velho branco, aspecto
venerando
Cujo nome não pode ser defunto
Enquanto houver
no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está
perfeita,
Um ramo por insígnia na direita.
78 Invocação às ninfas do Tejo e do
Mondego
Um ramo na mão tinha... Mas, ó
cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós,
Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo,
longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto
mar, com vento tão contrário,
Que, se não me
ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
79 Queixas do poeta. Perigos da guerra.
Olhai que
há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos
Lusitanos,
A fortuna mo traz peregrinando,
Novos trabalhos
vendo, e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os
perigos Mavórcios inumanos,
Qual Canace, que à morte
se condena,
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena.
80 Pobreza. Desilusões. Naufrágios.
Agora,
com pobreza avorrecida,
Por hospícios alheios
degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De
novo, mais que nunca, derribado;
Agora às costas escapando
a vida,
Que dum fio pendia tão delgado
Que não
menos milagre foi salvar-se
Que para o Rei Judaico
acrescentar-se.
81 Injustiças
E ainda,
Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me
cercassem,
Senão que aqueles, que eu cantando andava
Tal
prêmio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos
que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos
nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me
deitaram.
82
Vede, Ninfas, que engenhos de
senhores
O vosso Tejo cria valorosos,
Que assim sabem prezar
com tais favores
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que
exemplos a futuros escritores,
Para espertar engenhos
curiosos,
Para porem as coisas em memória,
Que merecerem
ter eterna glória!
83 Louvor somente a quem merece
Pois logo em
tantos males é forçado,
Que só vosso favor me
não faleça,
Principalmente aqui, que sou
chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós
sós, que eu tenho já jurado
Que não o
empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve
algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.
84
Nem creiais, Ninfas, não, que a fama
desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio
interesse,
Inimigo da divina e humana Lei.
Nenhum ambicioso,
que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por
poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus
vícios;
85
Nenhum que use de seu poder
bastante,
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer
ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
Nem,
Camenas, também cuideis que canto
Quem, com hábito
honesto e grave, veio,
Por contentar ao Rei no ofício
novo,
A despir e roubar o pobre povo.
86
Nem
quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a
lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom
respeito,
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre,
com pouco experto peito,
Razões aprende, e cuida que é
prudente,
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os
trabalhos alheios, que não passa.
87
Aqueles
sós direi, que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a
amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão
bem de suas obras merecida.
Apolo, e as Musas que me
acompanharam,
Me dobrarão a fúria
concedida,
Enquanto eu tomo alento descansado,
Por tornar ao
trabalho, mais folgado.
CANTO VIII
1 Paulo da Gama narra ao Catual
a história dos
heróis portugueses
Na primeira figura se detinha
O
Catual que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão
tinha,
A barba branca, longa e penteada:
"Quem era, e por
que causa lhe convinha
A divisa, que tem na mão
tomada?"
Paulo responde, cuja voz discreta
O Mauritano
sábio lhe interpreta.
2 Luso
"Estas figuras todas que
aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspectos,
Mais bravos e
mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos:
Antigos
são, mas ainda resplandecem
Colo nome, entre os engenhos
mais perfeito
Este que vês é Luso, donde a fama
O
nosso Reino Lusitânia chama.
3
"Foi
filho e companheiro do Tebano,
Que tão diversas partes
conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as
armas, que contino usou;
Do Douro o Guadiana o campo ufano,
Já
dito Elísio, tanto o contentou,
Que ali quis dar aos já
cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.
4
"O
ramo que lhe vês para divisa,
O verde tirso foi de Baco
usado;
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu
companheiro e filho amido.
Vês outro, que do Tejo a terra
pisa,
Depois de ter tão longo mar arado,
Onde muros
perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória
fica?
5
"Ulisses é o que faz a
santa casa
A Deusa, que lhe dá língua facunda;
Que,
se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá
na Europa Lisboa ingente funda."
"Quem será
estoutro cá, que o campo arrasa
De mortos, com presença
furibunda?
Grandes batalhas tem desbaratadas,
Que as águias
nas bandeiras tem pintadas."
6 Viriato
Assim o Gentio diz. Responde o Gama:
"Este que vês, pastor já foi de gado;
Viriato
sabemos que se chama,
Destro na lança mais que no
cajado;
Injuriada tem de Roma a f ama,
Vencedor invencível
afamado;
Não tem com ele, não, nem ter puderam
O
primor que com Pirro já tiveram.
7 Sertório
"Com força, não;
com manha vergonhosa,
A vida lhe tiraram que os espanta:
Que o
grande aperto, em gente ainda que honrosa,
As vezes leis
magnânimas quebranta.
Outro está aqui que, contra a
pátria irosa,
Degradado, conosco se alevanta:
Escolheu
bem com quem se alevantasse,
Para que eternamente se
ilustrasse.
8
"Vês? conosco também
vence as bandeiras
Dessas aves de Júpiter validas;
Que
já naquele tempo as mais Guerreiras
Gentes de nós
souberam ser vencidas.
Olha tão subtis artes e
maneiras,
Para adquirir os povos, tão fingidas,
A
fatídica Cerva que o avisa:
Ele é Sertório, e
ela a sua divisa.
9 Conde Dom Henrique
"Olha estoutra
bandeira, e vê pintado
O grã progenitor dos Reis
primeiros.
Nós Úngaro o fazemos, porém
nado
Crêem ser em Lotaríngia os estrangeiros.
Depois
de ter com os Mouros superado,
Galegos e Leoneses cavaleiros,
A
casa Santa passa o santo Henrique,
Por que o tronco dos Reis se
santifique."
10 Afonso Henriques
"Quem é, me diz,
este outro que me espanta,
(Pergunta o Malabar maravilhado)
Que
tantos esquadrões, que gente tanta,
Com tão pouca,
tem roto e destroçado?
Tantos muros aspérrimos
quebranta,
Tantas batalhas dá, nunca cansado,
Tantas
coroas tem por tantas partes
A seus pés derribadas, e
estandartes!"
11
"Este é
o primeiro Afonso, disse o Gama,
Que todo Portugal aos Mouros
toma;
Por quem, no Estígio lago, jura a Fama
De mais não
celebrar nenhum de Roma.
Este é aquele zeloso a quem Deus
ama,
Com cujo braço o Mouro inimigo doma,
Para quem de
seu Reino abaixa os muros,
Nada deixando já para os
futuros,
12
"Se César, se
Alexandre Rei, tiveram
Tão pequeno poder, tão pouca
gente,
Contra tantos inimigos quantos eram
Os que desbaratava
este excelente,
Não creias que seus nomes se estendera
Com
glórias imortais tão largamente;
Mas deixa os feitos
seus inexplicáveis,
Vê que os de seus vassalos são
notáveis.
13 Egas Moniz
"Este que vês olhar com
gesto irado
Para o rompido aluno mal sofrido,
Dizendo-lhe que o
exército espalhado
Recolha, e torne ao campo
defendido;
Torna o moço do velho acompanhado,
Que
vencedor o torna de vencido:
Egas Moniz se chama o forte
velho,
Para leais vassalos claro espelho.
14
"Vê-lo
cá vai com os filhos a entregar-se,
A corda ao colo, nu de
seda e pano,
Porque não quis o moço
sujeitar-se,
Como ele prometera, ao Castelhano.
Fez com siso e
promessas levantar-se
O cerco, que já estava soberano;
Os
filhos e mulher obriga à pena:
Para que o senhor salve, a
si condena.
15
"Não fez o Cônsul
tanto, que cercado
Foi nas forças Caudinas, de
ignorante,
Quando a passar por baixo foi forçado
Do
Samnítico jugo triunfante.
Este, pelo seu povo injuriado,
A
si se entrega só, firme e constante;
Estoutro a si, e os
filhos naturais,
E a consorte sem culpa, que dói mais.
16 Dom Fuas Roupinho
"Vês este que,
saindo da cilada,
Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?
Já
o Rei tem preso e a vila descercada:
Ilustre feito, digno de
Mavorte!
Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
No mar
também aos Mouros dando a morto,
Tomando-lhe as galés,
levando a glória
Da primeira marítima
vitória.
17
"É, Dom Fuas
Roupinho, que na terra
E no mar resplandece juntamente,
Com o
fogo que acendeu junto da serra
De Abila, nas galés da
Maura gente.
Olha como, em tão justa e santa guerra,
De
acabar pelejando está contente:
Das mãos dos Mouros
entra a feliz alma,
Triunfando, nos céus, com justa palma.
18 Henrique, de Bonn
"Não vês
um ajuntamento, de estrangeiro
Trajo, sair da grande armada
nova,
Que ajuda a combater o Rei primeiro
Lisboa, de si dando
santa prova?
Olha Henrique, famoso cavaleiro,
A palma que lhe
nasce junto à cova.
Por eles mostra Deus milagre
visto:
Germanos são os mártires de Cristo.
19
"Um
Sacerdote vê brandindo a espada
Contra Arronches, que toma,
por vingança
De Leiria, que de antes foi tomada
Por quem
por Mafamede enresta a lança:
É Teotônio,
Prior. Mas vê cercada
Santarém, e verás a
segurança
Da figura nos muros, que primeira
Subindo,
ergueu das Quinis a bandeira.
20 Mem Moniz
"Vê-lo cá, donde
Sancho desbarata
Os Mouros de Vandália em fera guerra;
Os
inimigos rompendo, o alferes mata
E o Hispálico pendão
derriba em terra:
Mem Moniz é, que em si o valor
retrata,
Que o sepulcro do pai com os ossos cerra,
Digno destas
bandeiras, pois sem falta
A contrária derriba e a sua
exalta.
21 Giraldo Sem-Pavor
"Olha aquele que desce
pela lança?
Com as duas cabeças dos vigias,
Onde
a cilada esconde, com que alcança
A cidade por manhas e
ousadias.
Ela por armas toma a semelhança
Do cavaleiro,
que as cabeças frias
Na mão levava (feito nunca
feito!)
Giraldo Sem-pavor é o forte peito.
22
"Não
vês um Castelhano, que agravado
De Afonso nono rei, pelo
ódio antigo
Dos de Lara, com os Mouros é deitado,
De
Portugal fazendo-se inimigo?
Abrantes vila toma, acompanhado
Dos
duros infiéis que traz consigo.
Mas vê que um
Português com pouca gente
O desbarata e o prende
ousadamente.
23 Martim Lopes. Dom Mateus, bispo de
Lisboa
"Martim Lopes se chama o cavaleiro,
Que
destes levar pode a palma e o louro.
Mas olha um Eclesiástico
guerreiro,
Que em lança de aço torna o Bago de
ouro.
Vê-lo entre os duvidosos tão inteiro
Em não
negar batalha ao bravo Mouro;
Olha o sinal no céu que lhe
aparece,
Com que nos poucos seus o esforço
cresce.
24
"Vós? vão os
Reis de Córdova e Sevilha
Rotos, com os outros dois, e não
de espaço.
Rotos? mas antes mortos, maravilha
Feita de
Deus, que não de humano braço.
Vês? já
a vila de Alcáçare se humilha,
Sem lhe valer defesa,
ou muro de aço,
A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
Que a
coroa da palma ali coroa.
25 Dom Paio Correia
"Olha um Mestre que
desce de Castela,
Português de nação, como
conquista
A terra dos Algarves, e já nela
Não
acha quem por armas lhe resista;
Com manha, esforço, e com
benigna estrela,
Vilas, castelos toma à escala vista.
Vês
Tavila tomada aos moradores,
Em vingança dos sete
caçadores!
26 Gonçalo Ribeiro, Vasco Anes e Fernando
Martins
"Vês? com bélica astúcia
ao Mouro ganha
Silves, que ele ganhou com força ingente:
É Dom Paio Correia, cuja manha
E grande esforço
faz inveja à gente.
Mas não passes os três que
em França e Espanha
Se fazem conhecer perpetuamente
Em
desafios, justas e torneios,
Nelas deixando públicos
troféus.
27
"Vê-los, com o
nome vêm de aventureiros
A Castela, onde o preço sós
levaram
Dos jogos de Belona verdadeiros,
Que com dano de alguns
se exercitaram.
Vê mortos os soberbos cavaleiros,
Que o
principal dos três desafiaram,
Que Gonçalo Ribeiro se
nomeia,
Que pode não temer a lei Leteia.
28 Nuno Álvares Pereira
"Atenta num,
que a fama tanto estende,
Que de nenhum passado se contenta;
Que
a pátria, que de um fraco fio pende,
Sobre seus duros
ombros a sustenta.
Não no vês tinto de ira, que
reprende
A vil desconfiança inerte e lenta
Do povo, e
faz que tome o doce freio
De Rei seu natural, e não de
alheio?
29 Batalhas de Aljubarrota e Valverde
"Olha:
por seu conselho e ousadia
De Deus guiada só, e de santa
estrela,
Só pode o que impossível parecia:
Vencer
o povo ingente de Castela.
Vês, por indústria,
esforço e valentia,
Outro estrago e vitória clara e
bela,
Na gente, assim feroz como infinita,
Que entre o Tarteso
e Goadiana habita?
30 Nuno Álvares Pereira
"Mas não
vês quase já desbaratado
O poder Lusitano, pela
ausência
Do Capitão devoto, que, apartado
Orando
invoca a suma e trina Essência?
Vê-lo com pressa já
dos seus achado,
Que lhe dizem que falta resistência
Contra
poder tamanho, e que viesse,
Por que consigo esforço aos
fracos desse?
31
"Mas olha com que santa
confiança,
Que inda não era tempo,
respondia,
Como quem tinha em Deus a seguraria
Da vitória
que logo lhe daria.
Assim Pompílio, ouvindo que a
possança
Dos inimigos a terra lhe corria,
A quem lhe a
dura nova estava dando,
"Pois eu, responde, estou
sacrificando."
32
"Se quem
com tanto esforço em Deus se atreve,
Ouvir quiseres como se
nomeia,
Português Cipião chamar-se deve;
Mas mais
de Dom Nuno Alvares se arreia:
Ditosa pátria que tal filho
teve!
Mas antes pai, que enquanto o Sol rodeia
Este globo de
Ceres e Netuno,
Sempre suspirará por tal aluno.
33 Pêro Rodrigues do Landroal
"Na
mesma guerra vê que presas ganha
Estoutro Capitão de
pouca gente;
Comendadores vence e o gado apanha,
Que levavam
roubado ousadamente.
Outra vez vê que a lança em
sangue banha
Destes, só por livrar com o amor ardente
O
preso amigo, preso por leal:
Pêro Rodrigues é do
Landroal.
34 Gil Fernandes. Rui Pereira.
"Olha este
desleal o como paga
O perjúrio que fez e vil engano:
Gil
Fernandes é de Elvas quem o estraga,
E faz vir a passar o
último dano:
De Xerez rouba o campo, e quase alaga
Com o
sangue de seus donos Castelhano.
Mas olha Rui Pereira, que com o
rosto
Faz escudo às galés, diante posto.
35 Dezessete Portugueses contra 400 Castelhanos
"Olha
que dezessete Lusitanos,
Neste outeiro subidos se
defendem,
Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
Que em derredor,
pelos tomar, se estendem;
Porém logo sentiram, com seus
danos,
Que não só se defendem, mas ofendem:
Digno
feito de ser no mundo eterno,
Grande no tempo antigo e no
moderno.
36 Trezentos Lusitanos contra 1000 Romanos. Viriato
"Sabe-se
antigamente que trezentos
Já contra mil Romanos
pelejaram,
No tempo que os viris atrevimentos
De Viriato tanto
se ilustraram,
E deles alcançando vencimentos
Memoráveis,
de herança nos deixaram
Que os muitos, por ser poucos, não
temamos:
O que depois mil vezes amestramos.
37 Os Infantes Dom Pedro e Dom Henrique
"Olha
cá dois infantes, Pedro e Henrique,
Progênie generosa
de Joane:
Aquele faz que fama ilustre fique
Dele em Germânia,
com que a morte engane;
Este, que ela nos mares o publique
Por
seu descobridor, e desengane
De Ceita a Maura túmida
vaidade,
Primeiro entrando as portas da cidade.
38 Dom Pedro de Meneses, Conde de Vila-Real,
e
Dom Duarte de Meneses,
Conde de Viana e Tarouca
"Vês
o conde Dom Pedro, que sustenta
Dois cercos contra toda a
Barbaria?
Vês, outro Conde está, que representa
Em
terra Marte, em forças e ousadia;
De poder defender se não
contenta
Alcácere da ingente companhia;
Mas do seu Rei
defende a cara vida,
Pondo por muro a sua, ali perdida.
39 Censura aos descendentes dos heróis
"Outros
muitos verias, que os pintores
Aqui também por certo
pintariam;
Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores,
Honra,
prêmio, favor, que as artes criam:
Culpa dos viciosos
sucessores,
Que degeneram, certo, e se desviam
Do lustre e do
valor dos seus passados,
Em gostos e vaidades
atolados.
40
"Aqueles pais ilustres que
já deram
Princípio à geração
que deles pende,
Pela virtude muito então fizeram,
E por
deixar a casa, que descende.
Cegos, que dos trabalhos que
tiveram,
Se alta fama e rumor deles se estende,
Escuros deixam
sempre seus menores,
Com lhe deixar descansos corruptores.
41 Injustiças dos reis
"Outros também
há grandes e abastados,
Sem nenhum tronco ilustre donde
venham;
Culpa de Reis, que às vezes a privados
Dão
mais que a mil, que esforço e saber tenham.
Estes os seus
não querem ver pintados,
Crendo que cores vãs lhe
não convenham,
E, como a seu contrairo natural,
A
pintura, que fala, querem mal.
42 Termina Paulo da Gama a
explicação
das figuras das bandeiras
"Não nego que há
contudo descendentes
Do generoso tronco, e casa rica,
Que com
costumes altos e excelentes,
Sustentam a nobreza que lhe fica;
E
se a luz dos antigos seus parentes
Neles mais o valor não
clarifica,
Não falta ao menos, nem se faz escura.
Mas
destes acha poucos a pintura."
43
Assim
está declarando os grandes feitos
O Gama, que ali mostra a
vária tinta,
Que a douta mão tão claros, tão
perfeitos,
Do singular artífice ali pinta.
Os olhos
tinha prontos e direitos
O Catual na história bem
distinta;
Mil vezes perguntava e mil ouvia
As gostosas batalhas
que ali via.
44 Retira-se de bordo o Catual
Mas já a
luz se mostrava duvidosa,
Porque a a lâmpada grande se
escondia
Debaixo do Horizonte e luminosa
Levava aos Antípodas
o dia,
Quando o Gentio e a gente generosa
Dos Naires da nau
forte se partia
A buscar o repouso que descansa
Os lassos
animais, na noite mansa.
45 Os arúspices do Samorim contra os
portugueses
Entretanto os Arúspices famosos
Na
falsa opinião, que em sacrifícios
Antevêem
sempre os casos duvidosos,
Por sinais diabólicos e
indícios,
Mandados do Rei próprio,
estudiosos
Exercitavam a arte e seus ofícios
Sobre esta
vinda desta gente estranha,
Que às suas terras vem da
ignota Espanha.
46 Vaticínios
Sinal lhe mostra o Demo
verdadeiro,
De como a nova gente lhe seria
Jugo perpétuo,
eterno cativeiro,
Destruição de gente, e de
valia.
Vai-se espantado o atônito agoureiro
Dizer ao Rei
(segundo o que entendia)
Os sinais temerosos que alcançara
Nas
entranhas das vítimas que olhara.
47 Baco aparece em sonho a um sacerdote maometano
A
isto mais se ajunta que um devoto
Sacerdote da lei de
Mafamede,
Dos ódios concebidos não remoto
Contra
a divina Fé, que tudo excede,
Em forma do Profeta falso e
noto,
Que do filho da escrava Agar procede,
Baco odioso em
sonhos lhe aparece,
Que de seus ódios ainda se não
desse.
48 Fala de Baco ao sacerdote maometano
E diz-lhe
assim: "Guardai-vos, gente minha,
Do mal que se aparelha pelo
inimigo
Que pelas águas úmidas caminha,
Antes que
esteis mais perto do perigo."
Isto dizendo, acorda o Mouro
asinha,
Espantado do sonho; mas consigo
Cuida que não é
mais que sonho usado:
Torna a dormir quieto e sossegado.
49
Torna
Baco, dizendo: "Não conheces
O grã legislador
que a teus passados
Tem mostrado o preceito a que obedeces,
Sem
o qual fôreis muitos batizados?
Eu por ti, rudo, velo; e tu
adormeces!
Pois saberás que aqueles, que chegados
De
novo são, serão muito grande dano
Da lei que eu dei
ao néscio povo humano.
50
"Enquanto
é fraca a força desta gente,
Ordena como em tudo se
resista,
Porque, quando o Sol sai, facilmente
Se pode nele pôr
a aguda vista;
Porém, depois que sobe claro e ardente,
Se
agudeza dos olhos o conquista,
Tão cega fica, quanto
ficareis,
Se raízes criar lhe não tolheis."
51
Narra o Mouro aos Naires o sonho que tivera
Isto dito, ele
e o sono se despede.
Tremendo fica o atônito Agareno:
Salta
da cama, lume ao servos pede,
Lavrando nele o fervido
veneno.
Tanto que a nova luz que ao Sol precede
Mostrara rosto
angélico e sereno,
Convoca os principais da torpe
seita,
Aos quais do que sonhou dá conta estreita.
52 Intrigas, perfídias e suborno.
Diversos
pareceres e contrários
Ali se dão , segundo o que
entendiam;
Astutas traições, enganos
vários,
Perfídias inventavam e teciam.
Mas,
deixando conselhos temerários,
Destruição da
gente pretendiam,
Por manhas mais subtis e ardis melhores,
Com
peitas adquirindo os regedores;
53
Com
peitas, ouro, e dádivas secretas
Conciliam da terra os
principais,
E com razões notáveis e
discretas
Mostram ser perdição dos naturais,
Dizendo
que são gentes inquietas,
Que, os mares discorrendo
ocidentais,
Vivem só de piráticas rapinas,
Sem
Rei, sem leis humanas ou divinas
54 O rei deve saber escolher os seus conselheiros
Ó
quanto deve o Rei que bem governa,
De olhar que os conselheiros,
ou privados,
De consciência e de virtude interna
E de
sincero amor sejam dotados!
Porque, como este posto na
suprema
Cadeira, pode mal dos apartados
Negócios ter
notícia mais inteira,
Do que lhe der a língua
conselheira.
55
Nem tão pouco direi
que tome tanto
Em grosso a consciência limpa e certa,
Que
se enleve num pobre e humilde manto,
Onde ambição
acaso ande encoberta.
E quando um bom em tudo é justo e
santo,
Em negócios do mundo pouco acerta,
Que mal com
eles poderá ter conta
A quieta inocência, em só
Deus pronta.
56 Dilação do despacho requerido pelo Gama
Mas
aqueles avaros Catuais,
Que o Gentílico povo
governavam,
Induzidos das gentes infernais,
O Português
despacho dilatavam.
Mas o Gama, que não pretende mais,
De
tudo quanto os Mouros ordenavam,
Que levar a seu Rei um sinal
certo
Do mundo, que deixava descoberto.
57
Nisto
trabalha só; que bem sabia
Que depois que levasse esta
certeza,
Armas, o naus, e gente mandaria
Manuel, que exercita a
suma alteza,
Com que a seu jugo e lei someteria
Das terras e do
mar a redondeza;
Que ele não era mais que um
diligente
Descobridor das terras do Oriente.
58 Determina o Gama falar ao Samorim
Falar ao Rei
gentio determina,
Por que com seu despacho se tornasse,
Que já
sentia em tudo da malina
Gente impedir-se quanto desejasse.
O
Rei, que da notícia falsa e indina
Não era de
espantar se se espantasse,
Que tão crédulo era em
seus agouros,
E mais sendo afirmados pelos Mouros,
59
Este
temor lhe esfria o baixo peito.
Por outra parte a força da
cobiça,
A quem por natureza está sujeito,
Um
desejo imortal lhe acende e atiça:
Que bem vê que
grandíssimo proveito
Fará, se com verdade e com
justiça
O contrato fizer por longos anos,
Que lhe comete
o Rei dos Lusitanos.
60 Manda o Samorim chamar o Gama, e o que lhe diz
Sobre
isto, nos conselhos que tomava,
Achava muito contrários
pareceres;
Que naqueles com quem se aconselhava
Executa o
dinheiro seus poderes.
O grande Capitão chamar mandava,
A
quem chegado disse: "Se quiseres
Confessar-me a
verdade limpa e nua,
Perdão alcançarás da
culpa tua.
61
Fala do Samorim ao Gama
"Eu
sou bem informado que a embaixada
Que de teu Rei me deste, que é
fingida;
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,
Mas
vagabundo vás passando a vida;
Que quem da Hespéria
última alongada,
Rei ou senhor de insânia
desmedida,
Há de vir cometer com naus e frotas
Tão
incertas viagens e remotas?
62
"E se de
grandes Reinos poderosos
O teu Rei tem a régia
majestade,
Que presentes me trazes valerosos,
Sinais de tua
incógnita verdade?
Com peças e dons altos,
sumptuosos,
Se lia dos Reis altos a amizade;
Que sinal nem
penhor não é bastante
As palavras dum vago
navegante.
63
"Se porventura vindes
desterrados,
Como já foram homens de alta sorte,
Em meu
Reino sereis agasalhados,
Que toda a terra é pátria
para o forte,;
Ou se piratas sois ao mar usados,
Dizei-mo sem
temor de infâmia ou morte,
Que por se sustentar em toda
idade,
Tudo faz a vital necessidade."
64
Resposta
do Gama
Isto assim dito, o Gama, que já tinha
Suspeitas
das insídias que ordenava
O Mallomético ódio,
donde vinha
Aquilo que tão mal o Rei cuidava,
Com uma
alta confiança, que convinha,
Com que seguro crédito
alcançava,
Que Vênus Acidália lhe
influía,
Tais palavras do sábio peito abria:
65
"Se
os antigos delitos, que a malícia
Humana cometeu na prisca
idade,
Não causaram que o vaso da niquícia,
Açoute
tão cruel da Cristandade,
Viera pôr perpétua
inimicícia
Na geração de Adão, coa
falsidade,
Ó poderoso Rei da torpe seita,
Não
conceberas tu tão má suspeita.
66 Resposta do Gama ao Samorim
"Mas porque
nenhum grande bem se alcança
Sem grandes opressões,
e em todo o feito
Segue o temor os passos da esperança,
Que
em suor vive sempre de seu peito,
Me mostras tu tão pouca
confiança
Desta minha verdade, sem respeito
Das razões
em contrário que acharias
Se não cresses a quem não
crer devias.
67
"Porque, se eu de
rapinas só vivesse,
Undívago, ou da pátria
desterrado,
Como crês que tão longe me viesse
Buscar
assento incógnito e apartado?
Por que esperanças, ou
por que interesse
Viria experimentando o mar irado,
Os
Antarcticos frios, e os ardores
Que sofrem do Carneiro os
moradores?
68
"Se com grandes presentes
de alta estima
O crédito me pedes do que digo,
Eu não
vim mais que a achar o estranho clima
Onde a natura pôs teu
Reino antigo.
Mas, se a Fortuna tanto me sublima
Que eu torne à
minha pátria e Reino amigo,
Então verás o dom
soberbo e rico,
Com que minha tornada certifico.
69
"Se
te parece inopinado feito,
Que Rei da última Hespéria
a ti me mande,
O coração sublime, o régio
peito,
Nenhum caso possível tem por grande.
Bem parece
que o nobre e grã conceito
Do Lusitano espírito
demande
Maior crédito, e fé de mais alteza,
Que
creia dele tanta fortaleza.
70
"Sabe que
há muitos anos que os antigos
Reis nossos firmemente
propuseram
De vencer os trabalhos e perigos,
Que sempre às
grandes coisas se opuseram;
E, descobrindo os mares inimigos
Do
quieto descanso, pretenderam
De saber que fim tinham, e onde
estavam
As derradeiras praias que lavavam.
71
"Conceito
digno foi do ramo claro
Do venturoso Rei, que arou primeiro
O
mar, por ir deitar do ninho caro
O morador de Abila
derradeiro.
Este, por sua indústria e engenho raro,
Num
madeiro ajuntando outro madeiro,
Descobrir pôde a parte, que
faz clara
De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da
Ara.
72
"Crescendo com os sucessos bons
primeiros
No peito as ousadias, descobriram
Pouco e pouco
caminhos estrangeiros,
Que uns, sucedendo aos outros,
prosseguiram.
De África os moradores derradeiros
Austrais,
que nunca as sete flamas viram,
Foram vistos de nós, atrás
deixando
Quantos estão os Trópicos
queimando.
73
"Assim com firme peito, e
com tamanho
Propósito, vencemos a Fortuna,
Até
que nós no teu terreno estranho
Viemos pôr a última
coluna.
Rompendo a força do líquido estanho,
Da
tempestade horrífica e importuna,
A ti chegamos, de quem só
queremos
Sinal, que ao nosso Rei de ti levemos.
74
"Esta
é a verdade, Rei; que não faria
Por tão
incerto bem, tão fraco prêmio,
Qual, não sendo
isto assim, esperar podia,
Tão longo, tão fingido e
vão proêmio;
Mas antes descansar me deixaria
No
nunca descansado e fero grêmio
Da madre Tethys, qual pirata
inico,
Dos trabalhos alheios feito rico.
75 Conclui o Gama a sua resposta ao Samorim
"Assim
que, ó Rei, se minha grã verdade
Tens por qual é,
sincera e não dobrada,
Ajunta-me ao despacho brevidade,
Não
me impeças o gosto da tornada.
E, se ainda te parece
falsidade,
Cuida bem na razão que está provada,
Que
com claro juízo pode ver-se,
Que fácil é a
verdade de entender-se."
76 Desconfia o Samorim da honestidade dos Catuais
A
tento estava o Rei na segurança
Com que provava o Gama o
que dizia;
Concebe dele certa confiança,
Crédito
firme em quanto proferia.
Pondera das palavras a abastança,
Julga
na autoridade grão valia,
Começa de julgar por
enganados
Os Catuais corruptos, mal julgados.
77 Permite o Samorim que o Gama
regresse
para bordo
Juntamente a cobiça do proveito,
Que
espera do contrato Lusitano,
O faz obedecer e ter respeito
Com
o Capitão, e não com o Mauro engano.
Enfim ao Gama
manda que direito
As naus se vá, e, seguro de algum
dano,
Possa a terra mandar qualquer fazenda,
Que pela
especiaria troque e venda.
78 Pede o Gama ao Catual que lhe
mande dar
embarcação
Que mande da fazenda, enfim, lhe
manda,
Que nos Reinos Gangéticos faleça;
Se
alguma traz idônea lá da banda
Donde a terra se acaba
e o mar começa.
Já da real presença
veneranda
Se parte o Capitão, para onde peça
Ao
Catual, que dele tinha cargo,
Embarcação, que a sua
está de largo.
79 Má vontade do Catual
Embarcação
que o leve às naus lhe pede;
Mas o mau Regedor, que novos
laços
Lhe maquinava, nada lhe concede,
Interpondo
tardanças e embaraços.
Com ele parte ao cais, por
que o arrede
Longe quanto puder dos régios paços,
Onde,
sem que seu Rei tenha notícia,
Faça o que lhe
ensinar sua malícia.
80
Lá bem
longe lhe diz que lhe daria
Embarcação bastante em
que partisse,
Ou que para a luz crástina do dia
Futuro
sua partida diferisse.
Já com tantas tardanças
entendia
O Gama, que o Gentio consentisse
Na má tenção
dos Mouros, torpe e fera,
O que dele atéli não
entendera.
81 Venalidade do Catual
Era este Catual um dos
que estavam
Corruptos pela Maumetana gente,
O principal por
quem se governavam
As cidades do Samorim potente.
Dele somente
os Mouros esperavam
Efeito a seus enganos torpemente.
Ele, que
no conceito vil conspira,
De suas esperanças não
delira.
82 Protesta o Gama contra a dilação
O
Gama com instância lhe requere
Que o mande pôr nas
naus, e não lhe vai;
E que assim lhe mandara, lhe refere,
O
nobre sucessor de Perimal.
Por que razão lhe impede e lhe
difere
A fazenda trazer de Portugal?
Pois aquilo que os Reis já
têm mandado
Não pode ser por outrem derrogado.
83 Traição do Catual
Pouco obedece
o Catual corrupto
A tais palavras; antes revolvendo
Na fantasia
algum subtil e astuto
Engano diabólico e estupendo,
Ou
como banhar possa o ferro bruto
No sangue avorrecido, estava
vendo;
Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por que nenhuma à
pátria mais tornasse.
84 O Catual retém em terra o Gama
Que
nenhum torne à pátria só pretende
O conselho
infernal dos Maumetanos,
Por que não saiba nunca onde se
estende
A terra Eoa o Rei dos Lusitanos.
Não parte o
Gama enfim, que lho defende
O Regedor dos bárbaros
profanos;
Nem sem licença sua ir-se podia,
Que as
almadias todas lhe tolhia.
85
Aos brados o
razões do Capitão
Responde o Idolatra que mandasse
Chegar à terra as naus, que longo estão,
Por
que melhor dali fosse e tornasse.
"Sinal é de inimigo
e de ladrão,
Que lá tão longe a frota se
alargasse,
Lhe diz, porque do certo e fido amigo
É não
temer do seu nenhum perigo."
86 Desconfia o Gama da traição do
Catual
Nestas palavras o discreto Gama
Enxerga bem que
as naus deseja perto
O Catual, por que com f erro e flama,
Lhas
assalte, por ódio descoberto.
Em vários pensamentos
se derrama;
Fantasiando está remédio certo,
Que
desse a quanto mal se lhe ordenava;
Tudo temia, tudo enfim
cuidava.
87 O espírito do Gama a tudo ocorre
Qual o
reflexo lume do polido
Espelho de aço, ou de cristal
formoso,
Que, do raio solar sendo ferido,
Vai ferir noutra
parte luminoso,
E, sendo da ociosa mão movido
Pela casa
do moço curioso,
Anda pelas paredes é
telhado
Trêmulo, aqui e ali, e dessossegado:
88
Tal
o vago juízo flutuava
Do Gama preso, quando lhe
lembrara
Coelho, se por caso o esperava
Na praia com os batéis,
como ordenara.
Logo secretamente lhe mandava,
"Que se
tornasse à frota, que deixara;
Não fosse salteado
dos enganos,
Que esperava dos feros Maumetanos."
89
Tal
há de ser quem quer, com o dom de Marte,
Imitar os ilustres
e igualá-los:
Voar com o pensamento a toda parte,
Adivinhar
perigos, e evitá-los:
Com militar engenho e subtil
arte
Entender os inimigos, e enganá-los;
Crer tudo,
enfim, que nunca louvare O Capitão que diga: "Não
cuidei".
90 Insiste o Catual em que mande
o Gama
chegar a terra a armada
Insiste o Malabar em tê-lo
preso,
Se não manda chegar a terra a armada;
Ele
constante, e de ira nobre aceso,
Os ameaços seus não
teme nada;
Que antes quer sobre si tomar o peso
De quanto mal a
vil malícia ousada
Lhe andar armando, que pôr em
ventura
A frota de seu Rei, que tem segura.
91 Continua o Gama detido
Aquela noite esteve ali
detido,
E parte do outro dia, quando ordena
De se tornar ao
Rei; mas impedido
Foi da guarda que tinha, não
pequena.
Comete-lhe o Gentio outro partido,
Temendo de seu Rei
castigo ou pena,
Se sabe esta malícia, a qual
asinha
Saberá, se mais tempo ali o detinha.
92
Diz-lhe
"que mande vir toda a fazenda
Vendível, que trazia,
para a terra,
Para que de vagar se troque e venda:
Que quem não
quer comércio, busca guerra.
Posto que os maus propósitos
entenda
O Gama, que o danado peito encerra,
Consente, porque
sabe por verdade,
Que compra com a fazenda a liberdade.
93 Escreve o Gama ao irmão,
para que
mande a terra a fazenda
Concertam-se que o negro mande
dar
Embarcações idôneas com que venha;
Que
os seus batéis não quer aventurar
Onde lhos tome o
inimigo, ou lhos detenha.
Partem as almadias a buscar
Mercadoria
Hispana, que convenha.
Escreve a seu irmão que lhe
mandasse
A fazenda com que se resgatasse.
94 É o Gama posto em liberdade
Vem a
fazenda a terra, aonde logo
A agasalhou o infame Catual;
Com
ela ficam Álvaro e Diogo,
Que a pudessem vender pelo que
val.
Se mais que obrigação, que mando e rogo
No
peito vil o prêmio pode e val,
Bem o mostra o Gentio a quem
o entenda,
Pois o Gama soltou pela fazenda.
95
Por
ela o solta, crendo que ali tinha
Penhor bastante, donde
recebesse
Interesse maior do que lhe vinha,
Se o Capitão
mais tempo detivesse.
Ele, vendo que já lhe não
convinha
Tornar a terra, por que não pudesse
Ser mais
retido, sendo às naus chegado
Nelas estar se deixa
descansado.
96 O poder do dinheiro
Nas naus estar se deixa
vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre:
Que não
se fia já do cobiçoso
Regedor corrompido e pouco
nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assim
como no pobre,
Pode o vil interesse e sede inimiga
Do dinheiro,
que a tudo nos obriga.
97 Poliméstor. Dánae. Tarpeia.
A
Polidoro mata o Ptei Treício,
Só por ficar senhor do
grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com
a filha de Acriso a chuva d'ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro
vício,
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega
aos inimigos a alta torre,
Do qual quase afogada em pago
morre.
98
Este rende munidas fortalezas,
Faz
tredores e falsos os amigos:
Este a mais nobres faz fazer
vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe
virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos:
Este
deprava às vezes as ciências,
Os juízos
cegando e as consciências;
99
Este
interpreta mais que sutilmente.
Os textos; este faz e desfaz
leis;
Este causa os perjúrios entre a gente,
E mil vezes
tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus
Onipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este
encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de
virtude.
CANTO IX
1 Ficam retidos em
terra os dois feitores portugueses
Tiveram longamente na
cidade,
Sem vender-se, a fazenda os dois feitores
Que os
infiéis, por manha e falsidade,
Fazem que não lha
comprem mercadores;
Que todo seu propósito e vontade
Era
deter ali os descobridores
Da Índia tanto tempo, que
viessem
De Meca as naus, que as suas desfizessem.
2 Meca
Lá no seio Eritreu, onde
fundada
Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu,
Do nome
da irmã sua assim chamada,
Que depois em Suez se
converteu,
Não longe o porto jaz da nomeada
Cidade Meca,
que se engrandeceu
Com a superstição falsa e
profana
Da religiosa água Maumetana.
3
Gidá
Gidá se chama o porto, aonde o trato
De
todo o Roxo mar mais florescia,
De que tinha proveito grande e
grato
O Soldão que esse Reino possuía.
Daqui aos
Malabares, por contrato
Dos infiéis, formosa companhia
De
grandes naus, pelo Índico Oceano,
Especiaria vem buscar
cada ano.
4 Aguardam os Mouros as naus de Meca
Por
estas naus os Mouros esperavam,
Que, como fossem grandes e
possantes,
Aquelas, que o comércio lhe tomavam,
Com
flamas abrasassem crepitantes.
Neste socorro tanto confiavam,
Que
já não querem mais dos navegantes,
Senão que
tanto tempo ali tardassem,
Que da famosa Meca as naus
chegassem.
5
Monçaide previne o
Gama
dos perigos que o ameaçam
Mas o Governador dos céus
e gentes,
Que, para quanto tem determinado,
De longe os meios
dá convenientes,
Por onde vem a ef eito o fim
fadado,
Influiu piedosos acidentes
De afeição em
Monçaide, que guardado
Estava para dar ao Gama aviso,
E
merecer por isso o Paraíso.
6 Informações
de Monçaide
Este, de quem se os Mouros não
guardavam,
Por ser Mouro como eles, antes era
Participante em
quanto maquinavam,
A tenção lhe descobre torpe e
fera.
Muitas vezes as naus que longe estavam
Visita, o com
piedade considera
O dano, sem razão, que se lhe ordena
Pela
maligna gente Sarracena.
7
Informa o cauto Gama das
armadas
Que de Arábica Meca vêm cada ano,
Que
agora são dos seus tão desejadas,
Para ser
instrumento deste dano.
Diz-lhe que vêm de gente
carregadas,
E dos trovões horrendos de Vulcano,
E que
pode ser delas oprimido,
Segundo estava mal apercebido.
8
Ordena
o Gama que os dois feitores recolham às naus
O Gama, que
também considerava
O tempo, que para a partida o chama,
E
que despacho já não esperava
Melhor do Rei, que os
Maumetanos ama,
Aos feitores, que em terra estão,
mandava
Que se tornem às naus; e por que a fama
Desta
súbita vinda os não impeça,
Lhe manda que a
fizessem escondida.
9 Retêm os Mouros os
feitores.
BRepresália do Gama nuns
mercadores.
Porém não tardou muito que, voando,
Um
rumor não soasse com verdade:
Que foram presos os feitores,
quando
Foram sentidos vir-se da cidade.
Esta fama as orelhas
penetrando
Do sábio Capitão, com brevidade
Faz
represaria nuns, que às naus vieram
A vender a pedraria que
trouxeram.
10 Levantam âncoras as naus do
Gama
Eram estes antigos mercadores
Ricos em Calecu, e
conhecidos;
Da falta deles, logo entre os melhores
Sentido foi
que estão no mar retidos.
Mas já nas naus os bons
trabalhadores
Volvem o cabrestante, e repartidos
Pelo trabalho,
uns puxam pela amarra,
Outros quebram com o peito duro a
barra;
11 Queixam-se ao Samorim as mulheres
e
filhos dos mercadores retidos
Outros pendem da verga, e já
desatam
A vela, que com grita se soltava,
Quando com maior
grita ao Rei relatam
A pressa com que a armada se levava.
As
mulheres e filhos que se matam
Daqueles que vão presos,
onde estava
O Samorim, se queixam que perdidos
Uns têm os
pais, as outras os maridos.
12 Troca dos
reféns
Manda logo os feitores Lusitanos
Com toda
sua fazenda livremente
Apesar dos inimigos Maumetanos,
Por que
lhe torne a sua presa gente.
Desculpas manda o Rei de seus
enganos;
Recebe o Capitão de melhor mente
Os presos que
as desculpas, e tornando
Alguns negros, se parte as velas
dando.
13 Partida da frota para Portugal
Parte-se
costa abaixo, porque entende
Que em vão com o Rei gentio
trabalhava
Em querer dele paz, a qual pretende
Por firmar o
comércio que tratava.
Mas como aquela terra, que se
estende
Pela Aurora, sabida já deixava,
Com estas novas
torna à pátria cara,
Certos sinais levando do que
achara.
14 Especiarias
Leva alguns
Malabares, que tomou
Por força, dos que o Samorim
mandara
Quando os presos feitores lhe tornou;
Leva pimenta
ardente, que comprara;
A seca flor de Banda não ficou,
A
noz, e o negro cravo, que faz clara
A nova ilha Maluco, com a
canela,
Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.
15
Acompanha Monçaide
os portugueses e faz-se cristão
Isto
tudo lhe houvera a diligência
De Monçaide fiel, que
também leva,
Que, inspirado de angélica
influência,
Quer no livro de Cristo que se escreva.
Ó
ditoso Africano, que a clemência
Divina assim tirou de
escura treva,
E tão longe da pátria achou
maneira
Para subir à pátria
verdadeira!
16
Apartadas assim da ardente costa
As
venturosas naus, levando a proa
Para onde a Natureza tinha posta
A
meta Austrina da esperança boa,
Levando alegres novas e
resposta
Da parte Oriental para Lisboa,
Outra vez cometendo os
duros medos
Do mar incerto, tímidos e ledos;
17
Alegria dos nautas por voltarem à pátria
O
prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros
e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação,
os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prêmio,
que ganhara
Por tão longos trabalhos e acidentes,
Cada
um tem por gosto tão perfeito,
Que o coração
para ele é vaso estreito.
18 Vênus
resolve premiar os navegantes
Porém a deusa Cípria,
que ordenada
Era para favor dos Lusitanos
Do Padre eterno, e
por bom gênio dada,
Que sempre os guia já de longos
anos;
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação
de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e
pretendia
Dar-lhe nos mares tristes alegria.
19
Depois
de ter um pouco revolvido
Na mente o largo mar que
navegaram,
Os trabalhos, que pelo Deus nascido
Nas Anfióneas
Tebas se causaram;
Já trazia de longe no sentido,
Para
prêmio de quanto mal passaram,
Buscar-lhe algum deleite,
algum descanso
No Reino de cristal líquido e
manso;
20
Algum repouso, enfim, com que
pudesse
Refocilar a lassa humanidade
Dos navegantes seus, como
interesse
Do trabalho que encurta a breve idade.
Parece-lhe
razão que conta desse
A seu filho, por cuja potestade
Os
Deuses faz descer ao vil terreno
E os humanos subir ao céu
sereno.
21 Vênus prepara uma ilha para os
portugueses
Isto bem revolvido, determina
De ter-lhe
aparelhada, lá no meio
Das águas, alguma ínsula
divina,
Ornada de esmaltado e verde arreio;
Que muitas tem no
reino, que confina
Da mãe primeira com o terreno
seio,
Afora as que possui soberanas
Para dentro das portas
Herculanas.
22
Ali quer que as aquáticas
donzelas
Esperem os fortíssimos barões,
Todas
as que têm título de belas,
Glória dos olhos,
dor dos corações,
Com danças e coreias,
porque nelas
Influirá secretas afeições,
Para
com mais vontade trabalharem
De contentar, a quem se
afeiçoaram.
23 Em busca de Cupido
Tal
manha buscou já, para que aquele
Que de Anquises pariu, bem
recebido
Fosse no campo que a bovina pele
Tomou de espaço,
por subtil partido.
Seu filho vai buscar, porque só
nele
Tem todo seu poder, fero Cupido,
Que assim como naquela
empresa antiga
Ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
24
O carro de Vênus
No carro ajunta as aves que na
vida
Vão da morte as exéquias celebrando,
E
aquelas em que já foi convertida
Perístera, as
boninas apanhando.
Em derredor da Deusa já partida,
No
ar lascivos beijos se vão dando.
Ela, por onde passa, o ar
e o vento
Sereno faz, com brando movimento.
25
Sobre os montes Idálios. Expedição de Cupido
Já
sobre os Idálios montes pende,
Onde o filho frecheiro
estava então
Ajuntando outros muitos, que pretende
Fazer
uma famosa expedição
Contra o mundo rebelde, por que
emende
Erros grandes, que há dias nele estão,
Amando
coisas que nos foram dadas,
Não para ser amadas, mas
usadas.
26 Acteon
Via Acteon na caça
tão austero,
De cego na alegria bruta, insana,
Que por
seguir um feio animal fero,
Foge da gente e bela forma humana;
E
por castigo quer, doce e severo,
Mostrar-lhe a formosura de
Diana;
E guarde-se não seja ainda comido
Desses cães
que agora ama, e consumido.
27 Os desconcertos do
mundo
E vê do mundo todo os principais,
Que
nenhum no bem público imagina;
Vê neles que não
têm amor a mais
Que a si somente, e a quem Filáucia
ensina.
Vê que esses que freqüentam os reais
Paços,
por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação,
que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.
28
Vê
que aqueles que devem à pobreza
Amor divino e ao
povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça
e integridade.
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã
severidade:
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do
povo só perecem.
29
Vê, enfim,
que ninguém ama o que deve,
Senão o que somente mal
deseja;
Não quer que tanto tempo se releve
O castigo,
que duro e justo seja.
Seus ministros ajunta, por que
leve
Exércitos conformes à peleja,
Que espera ter
com a mal regida gente,
Que lhe não for agora
obediente.
30 Preparam-se os Amores para a expedição
de Cupido
Muitos destes meninos voadores
Estão
em várias obras trabalhando:
Uns amolando ferros
passadores,
Outros ásteas de setas delgaçando;
Trabalhando,
cantando estão de amores,
Vários casos em verso
modulando,
Melodia sonora e concertada,
Suave a letra, angélica
a soada.
31
Nas frágoas imortais,
onde forjavam
Para as setas as pontas penetrantes,
Por lenha
corações ardendo estavam,
Vivas entranhas ainda
palpitantes.
As águas onde os ferros temperavam,
Lágrimas
são de míseros amantes;
A viva f lama, o nunca morto
lume,
Desejo é só que queima, e não
consume.
32
Alguns exercitando a mão
andavam
Nos duros corações da plebe rude;
Crebros
suspiros pelo ir soavam
Dos que feridos vão da seta
aguda.
Formosas Ninfas são as que curavam
As chagas
recebidas cuja ajuda
Não somente dá vida aos mal
feridos,
Mas põe em vida os ainda não
nascidos.
33
Formosas são algumas e
outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas;
Que o veneno
espalhado pelas veias
Curam-no às vezes ásperas
triagas.
Alguns ficam ligados em cadeias,
Por palavras subtis
de sábias magas:
Isto acontece às vezes, quando as
setas
Acertam de levar ervas secretas.
34 Amores
desencontrados
Destes tiros assim desordenados,
Que
estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores
mil desconcertados
Entre o povo ferido miserando;
E tamboril
nos heróis de altos estados
Exemplos mil se vêem de
amor nefando,
Qual o das moças Bíbli e Cinireia,
Um
mancebo de Assíria, um de Judeia.
35
E
vós, ó poderosos, por pastoras
Muitas vezes ferido o
peito vedes;
E por baixos e rudos, vós, senhoras,
Também
vos tomam nas Vulcâneas redes.
Uns esperando andais noturnas
horas,
Outros subis telhados e paredes:
Mas eu creio que deste
amor indino
É mais culpa a da mãe que a do
menino.
36 Vênus é recebida pelo
filho
Mas já no verde prado o carro leve
Punham
os brancos cisnes mansamente,
E Dione, que as rosas entro a
neve
No rosto traz, descia diligente.
O frecheiro, que contra o
céu se atreve,
A recebê-la vem, ledo e contente;
Vêm
todos os Cupidos servidores
Beijar a mão à Deusa dos
amores.
37 Fala de Vênus a Cupido
Ela,
por que não gaste o tempo em vão,
Nos braços
tendo o filho, confiada
Lhe diz: "Amado filho, em cuja
mão
Toda minha potência está fundada;
Filho,
em quem minhas forças sempre estão;
Tu, que as armas
Tifeias tens em nada,
A socorrer-me a tua potestade
Me triz
especial necessidade.
38
"Bem vês
as Lusitânicas fadigas,
Que eu já de muito longe
favoreço,
Porque das Parcas sei, minhas amigas,
Que me
hão de venerar e ter em preço.
E, porque tanto
imitam as antigas
Obras de meus Romanos, me ofereço
A
lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,
A quanto se estender o poder
nosso.
39
"E porque das insídias
do odioso
Baco foram na Índia molestados,
E das injúrias
sós do mar undoso
Puderam mais ser mortos que cansados,
No
mesmo mar, que sempre temeroso
Lhe foi, quero que sejam
repousados,
Tomando aquele prêmio e doce glória
Do
trabalho, que faz clara a memória.
40
"E
para isso queria que, feridas
As filhas de Nereu, no ponto
fundo,
De amor dos Lusitanos incendidas,
Que vêm de
descobrir o novo mundo,
Todas numa ilha juntas e subidas,
Ilha,
que nas entranhas do profundo
Oceano terei aparelhada,
De dons
de Flora e Zéfiro adornada;
41
"Ali,
com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e
rosas,
Em cristalinos paços singulares
Formosos leitos,
e elas mais formosas;
Enfim, com mil deleites não
vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
De amor feridas, para
lhes entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.
42
"Quero
que haja no reino Netunino,
Onde eu nasci, progênie forte e
bela,
E tome exemplo o mundo vil, malino,
Que contra tua
potência se rebela,
Por que entendam que muro
adamantino,
Nem triste hipocrisia val contra ela:
Mal haverá
na terra quem se guarde,
Se teu fogo imortal nas águas
arde."
43 Partem Vênus e Cupido
Assim
Vênus propôs, e o filho inieo,
Para lhe obedecer, já
se apercebe:
Manda trazer o arco ebúrneo rico,
Onde as
setas de ponta de ouro embebe.
Com gesto ledo a Cípria, e
impudico,
Dentro no carro o filho seu recebe;
A rédea
larga às aves, cujo canto
A Factôntea morte chorou
tanto.
44 A fama
Mas diz Cupido, que era
necessária
Uma famosa e célebre terceira,
Que,
posto que mil vezes lhe é contrária,
Outras muitas a
tem por companheira:
A Deusa Giganteia, temerária,
Jactante,
mentirosa, e verdadeira,
Que com cem olhos vê, e por onde
voa,
O que vê, com mil bocas apregoa.
45
Vão-a
buscar, e mandam adiante,
Que celebrando vá com tuba
clara
Os louvores da gente navegante,
Mais do que nunca os
d'outrem celebrara.
Já murmurando a Fama penetrante
Pelas
fundas cavernas se espalhara:
Fala verdade, havida por
verdade,
Que junto a Deusa traz Credulidade.
46
O
louvor grande, o rumor excelente
No coração dos
Deuses, que indignados
Foram por Baco contra a ilustre
gente,
Mudando, os fez um pouco afeiçoados.
O peito
feminil, que levemente
Muda quaisquer propósitos
tomados,
Já julga por mau zelo e por crueza
Desejar mal
a tanta fortaleza.
47 Cupido fere de amor as
Ninfas
Despede nisto o fero moço as setas
Uma
após outra: geme o mar com os tiros;
Direitas pelas ondas
inquietas
Algumas vão, e algumas fazem giros;
Caem as
Ninfas, lançam das secretas
Entranhas ardentíssimos
suspiros;
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama:
Que tanto,
como a vista, pode a fama.
48 Cupido fere as Ninfas
com suas setas amorosas
Os cornos ajuntou da ebúrnea
lua
Com força o moço indômito excessiva,
Que
Tethys quer ferir mais que nenhuma,
Porque mais que nenhuma lhe
era esquiva.
Já não fica na aljava seta alguma,
Nem
nos equóreos campos Ninfa viva;
E se feridas ainda estão
vivendo,
Será para sentir que vão morrendo.
49
Dai
lugar, altas e cerúleas ondas,
Que, vedes, Vênus traz
a medicina,
Mostrando as brancas velas e redondas,
Que vêm
por cima da água Netunina.
Para que tu recíproco
respondas,
Ardente Amor, à flama feminina,
É,
forçado que a pudicícia honesta
Faça quanto
lhe Vênus amoesta.
50 Congregam-se as Ninfas
e
Nereidas na Ilha dos Amores
Já todo o belo
coro se aparelha
Das Nereidas, e junto caminhava
Em coreias
gentis, usança velha,
Para a ilha, a que Vênus as
guiava.
Ali a formosa Deusa lhe aconselha
O que ela fez mil
vezes, quando amava.
Elas, que vão do doce amor
vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas.
51
Avistam os portugueses a Ilha dos Amores
Cortando vão
as naus a larga via
Do mar ingente para a pátria
amada,
Desejando prover-se de água fria,
Para a grande
viagem prolongada,
Quando juntas, com súbita
alegria,
Houveram vista da ilha namorada,
Rompendo pelo céu
a mãe formosa
De Menónio, suave e deleitosa.
52
Conduz Vênus a Ilha ao encontro dos navegantes
De
longe a Ilha viram fresca e bela,
Que Vênus pelas ondas lha
levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Para onde a forte
armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que
nela
Tomassem porto, como desejava,
Para onde as naus navegam a
movia
A Acidália, que tudo enfim podia.
53
"Mas firme a fez e imóvel, como viu
Que
era dos Nautas vista e demandada;
Qual ficou Delos, tanto que
pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Para lá
logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia uma enseada
Curva e
quieta, cuja branca areia,
Pintou de ruivas conchas Citereia.
54
Descrição da Ilha dos Amores
Três
formosos outeiros se mostravam
Erguidos com soberba graciosa,
Que
de gramíneo esmalte se adornavam..
Na formosa ilha alegre e
deleitosa;
Claras fontes o límpidas manavam
Do cume, que
a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A
sonorosa Ninfa fugitiva.
55
"Num
vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas
ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela
quanto pode imaginar-se;
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como
que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal
resplandecente,
Que em si o está pintando
propriamente.
56
"Mil árvores
estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e
belos:
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Dafne
nos cabelos;
Encosta-se no chão, que está caindo,
A
cidreira com os pesos amarelos;
Os formosos limões ali,
cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.
57
"As árvores agrestes que os outeiros
Têm
com frondente coma enobrecidos,
Alemos são de Alcides, e
os loureiros
Do louro Deus amados e queridos;
Mirtos de
Citereia, com os pinheiros
De Cibele, por outro amor vencidos;
Está apontando o agudo cipariso
Para onde é
posto o etéreo paraíso.
58 Os
frutos
Os dons que dá Pomona, ali Natura
Produz
diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
Que sem
ela se dão muito melhores:
As cerejas purpúreas na
pintura,
As amoras, que o nome têm de amores,
O pomo que
da pátria Pérsia veio,
Melhor tornado no terreno
alheio.
59
Abre a romã, mostrando
a rubicunda
Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes;
Entre
os braços do ulmeiro está a jocunda
Vide, com uns
cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore
fecunda,
Peras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao
dano, que, com os bicos,
Em vós fazem os pássaros
inicos.
60 As flores
Pois a tapeçaria
bela e fina,
Com que se cobre o rústico terreno,
Faz ser
a de Aquemênia menos diria,
Mas o sombrio vale mais
ameno.
Ali a cabeça a flor Cifísia inclina
Sôbolo
tanque lúcido e sereno;
Floresce o filho e neto de
Ciniras,
Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
61 As flores
Para julgar, difícil coisa
fora,
No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se dava
às flores cor a bela Aurora,
Ou se lha dão a ela as
belas flores.
Pintando estava ali Zéfiro e Flora
As
violas da cor dos amadores;
O lírio roxo, a fresca rosa
bela,
Qual reluz nas faces da donzela;
62 As
flores
A cândida cecém, das
matutinas
Lágrimas rociada, e a manjarona.
Vêem-se
as letras nas flores Hiacintinas,
Tão queridas do filho de
Latona.
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Cloris
com Pomona.
Pois se as aves no ar cantando voam,
Alegres
animais o chão povoam.
63 Os animais
Ao
longo da água o níveo cisne canta,
Responde-lhe do
ramo filomela;
Da sombra de seus cornos não se
espanta
Acteon, n'água cristalina e bela;
Aqui a fugace
lebre se levanta
Da espessa mata, ou tímida gazela;
Ali
no bico traz ao caro ninho
O mantimento o leve passarinho.
64
Desembarcam os portugueses
Nesta frescura tal
desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde
pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como
incautas.
Algumas doces cítaras tocavam,
Algumas harpas
e sonoras flautas,
Outras com os arcos de ouro se fingiam
Seguir
os animais, que não seguiam.
65 As
Ninfas
Assim lhe aconselhara a mestra experta;
Que
andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a
presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na
forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a
artificiosa formosura,
Nuas lavar-se deixam na água
pura,
66 As flores
Mas os fortes
mancebos, que na praia
Punham os pés, de terra
cobiçosos,
Que não há nenhum deles que não
saia
De acharem caça agreste desejosos,
Não
cuidam que, sem laço ou redes, caia
Caça naqueles
montes deleitosos,
Tão suave, doméstica e
benigna,
Qual ferida lha tinha já Ericina.
67
As flores
Alguns, que em espingardas e nas bestas,
Para
ferir os cervos se fiavam,
Pelos sombrios matos e
florestas
Determinadamente se lançavam:
Outros, nas
sombras, que de as altas sestas
Defendem a verdura, passeavam
Ao
longo da água que, suave e queda,
Por alvas pedras corre à
praia leda.
68 Enxergam os portugueses as
Ninfas
Começam de enxergar subitamente
Por entre
verdes ramos várias cores,
Cores de quem a vista julga e
sente
Que não eram das rosas ou das flores,
Mas da lã
fina e seda diferente,
Que mais incita a força dos
amores,
De que se vestem as humanas rosas,
Fazendo-se por arte
mais formosas.
69 Fala Fernão Veloso
Dá
Veloso espantado um grande grito:
"Senhores, caça
estranha, disse, é esta!
Se ainda dura o Gentio antigo
rito,
A Deusas é sagrada esta floresta.
Mais descobrimos
do que humano espírito
Desejou nunca; e bem se
manifesta
Que são grandes as coisas e excelentes,
Que o
mundo encobre aos homens imprudentes.
70 Caça
às Ninfas
"Sigamos estas Deusas, e vejamos
Se
fantásticas são, se verdadeiras."
Isto dito,
velozes mais que gamos,
Se lançam a correr pelas
ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas,
mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco sorrindo e gritos
dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando.
71
As flores
De uma os cabelos de ouro o vento leva
Correndo,
e de outra as fraldas delicadas;
Acende-se o desejo, que se
ceva
Nas alvas carnes súbito mostradas;
Uma de indústria
cai, e já releva,
Com mostras mais macias que
indignadas,
Que sobre ela, empecendo, também caia
Quem a
seguiu pela arenosa praia.
72 As Ninfas no
Banho
Outros, por outra parte, vão topar
Com as
Deusas despidas, que se lavam:
Elas começam súbito a
gritar,
Como que assalto tal não esperavam.
Umas,
fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se
lançavam
Nuas por entre o mato, aos olhos dando
O que às
mãos cobiçosas vão negando.
73
As flores
Outra, como acudindo mais depressa
A vergonha
da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n'água; outra se
apressa
Por tomar os vestidos, que tem fora.
Tal dos mancebos
há, que se arremessa,
Vestido assim e calçado (que,
coa mora
De se despir, há medo que ainda tarde)
A matar
na água o fogo que nele arde.
74 As
flores
Qual cão de caçador, sagaz e
ardido,
Usado a tomar na água a ave ferida,
Vendo no
rosto o férreo cano erguido
Para a garcenha ou pata
conhecida,
Antes que soe o estouro, mal sofrido
Salta n'água,
e da presa não duvida,
Nadando vai e latindo: assim o
mancebo
Remete à que não era irmã de
Febo.
75 Leonardo e Efire
Leonardo,
soldado bem disposto,
Manhoso, cavaleiro e namorado,
A quem
amor não dera um só desgosto,
Mas sempre fora dele
maltratado,
E tinha já por firme pressuposto
Ser com
amores mal afortunado,
Porém não que perdesse a
esperança
De ainda poder seu fado ter mudança,
76
Súplica de Leonardo
Quis aqui sua ventura, que
corria
Após Efire, exemplo de beleza,
Que mais caro que
as outras dar queria
O que deu para dar-se a natureza.
Já
cansado correndo lhe dizia:
"Ó formosura indigna de
aspereza,
Pois desta vida te concedo a palma,
Espera um corpo
de quem levas a alma.
77 As flores
"Todas
de correr cansam, Ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do
inimigo,
Tu só de mi só foges na espessura?
Quem
te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela
ventura,
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Ó não
na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me
mentia.
78 As flores
"Não
canses, que me cansas: e se queres
Fugir-me, por que não
possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, ainda que
esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espora;
quero ver, se tu quiseres,
Que subtil modo busca de escapar-te,
E
notarás, no fim deste sucesso,
ITra la spica e la man, qual
muro è messoI.
79 As flores
"Ó
não me fujas! Assim nunca o breve
Tempo fuja de tua
formosura!
Que, só com refrear o passo leve,
Vencerás
da fortuna a força dura.
Que Imperador, que exército
se atreve
A quebrantar a fúria da ventura,
Que, em
quanto desejei, me vai seguindo,
O que tu só farás
não me fugindo!
80 As flores
"Pões-te
da parte da desdita minha?
Fraqueza é dar ajuda ao mais
potente.
Levas-me um coração, que livre
tinha?
Solta-me, e correrás mais levemente.
Não
te carrega essa alma tão mesquinha,
Que nesses fios de ouro
reluzente
Atada levas? Ou, depois de presa,
Lhe mudaste a
ventura, e menos pesa?
81 As flores
"Nesta
esperança só te vou seguindo:
Que, ou tu não
sofrerás o peso dela,
Ou na virtude de teu gesto lindo
Lhe
mudarás a triste e dura estrela:
E se se lhe mudar, não
vás fugindo,
Que Amor te ferirá, gentil donzela,
E
tu me esperarás, se Amor te fere:
E se me esperas, não
há mais que espere."
82 As flores
Já
não fugia a bela Ninfa, tanto
Por se dar cara ao triste que
a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas
que dizia.
Volvendo o rosto já sereno e santo,
Toda
banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do
vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
83
Idílios Amorosos
Ó que famintos beijos na
floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão
suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O
que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com
prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que
julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode
experimentá-lo.
84 As flores
Desta
arte enfim conformes já as formosas
Ninfas com os seus
amados navegantes,
Os ornam de capelas deleitosas
De louro, e
de ouro, e flores abundantes.
As mãos alvas lhes davam como
esposas;
Com palavras formais e estipulantes
Se prometem eterna
companhia
Em vida e morte, de honra e alegria.
85
Tethys e o Gama
Uma delas maior, a quem se humilha
Todo
o coro das Ninfas, e obedece,
Que dizem ser de Celo e Vesta
filha,
O que no gesto belo se parece,
Enchendo a terra e o mar
de maravilha,
O Capitão ilustre, que o merece,
Recebe
ali com pompa honesta e régia,
Mostrando-se senhora grande
e egrégia.
86 As flores
Que,
depois de lhe ter dito quem era,
Com um alto exórdio, de
alta graça ornado,
Dando-lhe a entender que ali viera
Por
alta influição do imóvel fado,
Para lhe
descobrir da unida esfera
Da terra imensa, e mar não
navegado,
Os segredos, por alta profecia,
O que esta sua nação
só merecia,
87 As flores
Tomando-o
pela mão, o leva e guia
Para o cume dum monte alto e
divino,
No qual uma rica fábrica se erguia
De cristal
toda, e de ouro puro e fino.
A maior parte aqui passam do dia
Em
doces jogos e em prazer contino:
Ela nos paços logra seus
amores,
As outras pelas sombras entre as flores.
88
Revelação do Simbolismo na Ilha dos Amores
Assim
a formosa e a forte companhia
O dia quase todo estão
passando,
Numa alma, doce, incógnita alegria,
Os
trabalhos tão longos compensando.
Porque dos feitos
grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está
guardando
O prêmio lá no fim, bem merecido,
Com
fama grande e nome alto e subido.
89 As flores
Que
as Ninfas do Oceano tão formosas,
Tethys, e a ilha angélica
pintada,
Outra coisa não é que as deleitosas
Honras
que a vida fazem sublimada.
Aquelas proeminências
gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a
glória e maravilha:
Estes são os deleites desta
ilha.
90 Os Deuses
Que as imortalidades
que fingia
A antigüidade, que os ilustres ama,
Lá
no estelante Olimpo, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da
Fama,
Por obras valorosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que
se chama
Caminho da virtude alto e fragoso,
Mas no fim doce,
alegre e deleitoso:
91 As flores
Não
eram senão prêmios que reparte
Por feitos imortais e
soberanos
O mundo com os varões, que esforço e
arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter,
Mercúrio, Febo e Marte,
Eneias e Quirino, e os dois
Tebanos,
Ceres, Palas e Juno, com Diana,
Todos foram de fraca
carne humana.
92 A Fama.
Conselhos
aos que aspiram a Glória
Mas a Fama, trombeta de obras
tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses,
Semideuses imortais,
Indígetes, Heróicos e de
Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se
quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do
ócio ignavo,
Que o ânimo de livre faz escravo.
93
As flores
E ponde na cobiça um freio duro,
E na
ambição também, que indignamente
Tomais mil
vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e
urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro
valor não dão à gente:
Melhor é,
merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os
merecer.
94 As flores
Ou dai na paz as
leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o
dos pequenos;
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei
dos inimigos Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e possantes,
E
todos tereis mais, o nenhum menos;
Possuireis riquezas
merecidas,
Com as honras, que ilustram tanto as vidas.
95
As flores
E fareis claro o Rei, que tanto amais,
Agora
com os conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que
imortais
Vos farão, como os vossos já
passados;
Impossibilidades não façais,
Que quem
quis sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis
esclarecidos,
E nesta Ilha de Vênus recebidos.